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quinta-feira, novembro 22, 2012

SANTA CECÍLIA, VIRGEM E MARTIR


Hoje celebramos a santidade da virgem que foi exaltada como exemplo perfeitíssimo de mulher cristã, pois em tudo glorificou a Jesus. Santa Cecília é uma das mártires mais veneradas durante a Idade Média, tanto que uma basílica foi construída em sua honra no século V. Embora se trate da mesma pessoa, na prática fala-se de duas santas Cecílias:

 AS DUAS CECÍLIAS
Quem, aos dias de hoje, por turismo ou devoção, parte de Roma pela porta de São Sebastião e se encaminha pela Via Ápia Antica, ao chegar à altura do quilômetro três, depara à esquerda com um grandioso monumento: uma imponente torre cilíndrica de vinte metros de diâmetro, bem conservada apesar dos seus vinte séculos de existência. É uma tumba de Cecília Metella. A solene inscrição que se divisa ao longe recorda que a nobre matrona romana ali sepultada foi Cecília, filha de Quinto Metello Crético e esposa de Crasso, filho do triúnviro e general de Céssar na Gália. Um monumento, portanto, da era de Augusto.

Na antiga Roma imperial, os mortos não podiam ser sepultados dentro dos muros que limitavam o perímetro urbano da cidade. Por isso os romanos adquiriam terrenos ao longo das grandes vias que partiam da Cidade Eterna e ali faziam construir os túmulos de suas famílias.

Os séculos fizeram desaparecer a maior parte desses grandiosos monumentos funerários que ornavam as alas das vias imperiais nas proximidades de Roma. A tumba de Cecília Metella é um dos poucos que resistiu aos tempos e que ainda se pode contemplar.

Mas a Via Ápia esconde ainda a memória de outra Cecília. Esconde: é o termo adequado, pois é necessário para encontrá-la baixar as catacumbas de São Calisto, que se situam à direita, cerca de um quilômetro antes. São as mais célebres de Roma, pois aí foram sepultados quase todos os Papas do século III: Zeferino, Cornélio, Fabiano, Eutiquiano, Lúcio...

Ao lado dessa famosa cripta papal, descoberta por De Rossi no século passado, acha-se a capela de Santa Cecília. Nesse local a santa venerada deste tempos mui remotos, conforme atesta um afresco da santa que os arqueólogos dataram do século VII.

É provável que este terreno fosse primitivamente propriedade da família dos Cecílios ou Cecilianos, pois De Rossi recolheu nessa cripta diversas lápides, marmóreas com inscrições datadas do século II ao século V. Assim a inscrição de "Sétimius Praetextatus Caecilianus" e sua esposa "Pompéia Attica" do século IV. Pode-se concluir com probabilidade que a cripta de Santa Cecília era a capela funerária dos Cecílios. Pelos adornos e símbolos de suas lápides sepulcrais, observa-se que os Cecílios eram pagãos inicialmente, e que depois se converteram ao cristianismo. Estes, verossimilmente, ao se converterem, colocaram à disposição da Igreja aquele campo funerário para a sepultura de seus irmãos na fé. Tal conjectura tem algum fundamento, pois não seria um fato único na história da Igreja antiga. Com efeito, já desde a segunda metade do século I alguns membros da família imperial dos Flávios, ao se converteram ao cristianismo (Flávio Clemente, Flávia Domitila), haviam cedido seus terrenos para a sepultura dos cristãos: é a catacumba de Domitila que se encontra a pouca distância , na Via Ardeatina, e cuja parte mais importante é justamente o hipogeu dos Flávios. O mesmo se diga das catacumbas de Priscila na Via Nomentana, pertencente provavelmente à nobre família dos Acílios (Acílio Glábrio, ex-cônsul romano, é um dos mártires da perseguição de Domiciano).

A Via Appia, pois, conserva duas importantes memórias dos antigos Cecílios: a tumba de Cecília Metella e a cripta de Santa Cecília.

Duas Cecílias: a primeira, nobre matrona romana do século I, a segunda nobre jovem cristã do século III, provavelmente.
A tumba de Cecília Metella, em sua imponente majestade, é hoje um corpo sem alma, pois o nome da nobre matrona nada mais significa aos nossos contemporâneos. A cripta de Santa Cecília, ao contrário, apresenta-se ainda hoje como um dos santuários de grande veneração em Roma, pois ali acorrem diariamente numerosos peregrinos de Roma e do mundo para venerar a grande santa, consagrada pela Igreja como padroeira da música.

SANTA CECÍLIA NA TRADIÇÃO CRISTÃ E NA LITURGIA
Entre as santas mais antigas e mais veneradas pela tradição popular Santa Cecília ocupa um lugar de primária importância.

Sua biografia, baseada nos dados de uma Paixão (ou seja, descrição do martírio) escrita no século VI, é uma das mais conhecidas e divulgadas.

Os dados principais dessa Paixão são os seguintes: Cecília é apresentada como uma jovem romana de família nobre, que é prometida, sem que seus pais soubessem, e tinha consagrada a Deus sua virgindade. No dia de núpcias, enquanto a música ressoava no salão de festas, ela entoava em seu coração um hino à virtude da castidade.

Na primeira noite do matrimônio declara ao seu jovem esposo que não ouse tocar o seu corpo com amor impuro, pois que ela tem ao seu lado um anjo encarregado por Deus para defender sua virtude.

Valeriano exprime desejos de poder também ele ver o anjo. Cecília apresenta-lhe como condição essencial a recepção do batismo. O esposo manifesta-lhe suas boas disposições e ela o envia ao bispo Urbano que se encontra refugiado na Via Ápia.

O nobre romano recebe as primeiras instruções na religião cristã e é batizado por Urbano. Ao regressar para casa, fica deslumbrado diante da visão celeste do anjo de Cecília.

O exemplo de Valeriano, é imitado posteriormente por seu irmão Tibúrcio. Ambos, juntamente com Máximo, convertido por eles, são martirizados em Roma sob o governo do prefeito Túrcio Almáquio.

Pouco depois também Cecília é citada ao tribunal de Almáquio, por ser cristã. A jovem e condenada à morte por asfixia no "calidarium" de sua própria casa. Não obtendo esta pena o efeito desejado, Almáquio ordena que a virgem seja decapitada ali mesmo. O algoz treme ao dar-lhe os golpes fatais e a deixa semi- viva. Sua agonia prolonga-se por três dias. Nesse tempo Cecília confirma seus familiares na fé cristã e faz doação de seus bens à Igreja.

O Papa Urbano mandou sepultar seu corpo virginal ao lado dos outros bispos, seus colegas. A casa do martírio foi transformada em igreja.

Tais são, em resumo, os dados da Paixão. Escrita num século em que reinava no Ocidente grande entusiasmo pela vida religiosa, reflete claramente a intenção do autor de compor uma prática exortação de renúncia aos prazeres do mundo e de consagração total a Deus.

A Igreja aproveitou-se largamente dessas notícias biográficas ao compor o Ofício litúrgico de Santa Cecília, cuja festa se celebra no dia 22 de novembro: é um dos ofícios mais antigos e mais belos do Breviário Romano. As lições do segundo noturno apresentam um resumo da vida da santa extraída da Paixão. As antífonas e os responsórios evocam frases e episódios dessa mesma fonte lendário. Desta forma o Ofício litúrgico do dia 22 de novembro constitui uma das mais belas e ricas apologias da virgindade cristã.

SANTA CECÍLIA NA ARQUEOLOGIA E NA HISTÓRIA
Infelizmente a crítica histórica moderna, com seus notáveis recursos de pesquisas, nos leva a por em dúvida a autenticidade dos dados da Paixão.

O martírio de Cecília coloca-se, segundo a Paixão, no século III ou inícios do século IV, na perseguição de Diocleciano. Ora, o culto dos mártires organizou-se em Roma pelos fins do século III. Todavia o nome de Cecília não aparece entre os mártires romanos. A "Depositio martyrum", redigida por volta de 354 também não traz o nome da santa. No fim do século IV, o Papa Dâmaso ocupa-se grandemente do culto dos mártires: faz restaurar duas tumbas e prepara-lhes inscrições sepulcrais. É nesses versos que encontramos notícias do martírio de Inês, Lourenço, Tarcício e outros célebres mártires. Todavia o fato estranho - nenhuma alusão sequer à "virgem e mártir" Cecília.

Também Ambrósio e Prudêncio cantaram os louvores dos mártires dos primeiros séculos, mas não se encontra neles uma referência sequer que possa elucidar o enigma do culto a Santa Cecília.

A primeira referência a esse nome encontra-se apenas em 499, quando o Papa Símaco reuniu um sínodo em Roma com a participação do clero das diversas igrejas ou paróquias (títulos) de Roma. Entre as assinaturas encontramos dois padres, Marciano e Bonifácio, que acrescentam ao próprio nome o título de Cecília. O primeiro se subscreve apenas "presbyter tituli Caeciliae" ao passo que o segundo, ao menos conforme certas edições do concílio, ter-se-ia firmado "presbyter tituli sanctae Caeciliae".

É portanto só no fim do século V que encontramos a primeira referência a Santa Cecília. No século seguinte, com a publicação da Paixão, seu nome começa a ser celebrado pela devoção popular e pela liturgia.

Note-se, porém, que essa biografia aparece apenas cerca de trezentos anos após a morte de Cecília, sem que antes se encontrasse a mínima referência à sua vida e martírio. Como explicar esse fato? Imagine-se que só agora, no século XX, surgisse uma biografia de Galileu ou Descartes, sem que antes nada se soubesse a respeito deles nos séculos XVIII e XIX. Só mesmo documentos de uma autenticidade comprovada nos poderiam induzir a admitir a veracidade dessas biografias. Mas, são justamente esses documentos que faltam à vida de Santa Cecília!

UM MONUMENTO À VIRGINDADE CRISTÃ
A Paixão de Santa Cecília nasceu nos primórdios do século VI, em que reinava no Ocidente grande amor pela vida monacal. Este entusiasmo crescente tivera origem em grande parte na enorme difusão da vida de Santo Antão eremita, escrita por Santo Atanásio. Esta biografia, muito divulgada no Ocidente, foi um dos estímulos para a conversão de Santo Agostinho. A regra de São Bento, escrita nos inícios do século VI, tornou-se o fundamento da vida monacal na Europa, como já o era no Oriente a Regra de São Basílio. Foi nessa época e nesse clima que o autor da Paixão de Santa Cecília criou esse seu romance cristão, tão apreciado. Poderíamos bem compará-lo com êxito do romance "Fabíola", escrito pelo Cardeal Wiseman no século passado, exatamente quando as notáveis descobertas arqueológicas de João Batista De Rossi despertavam o interesse do mundo inteiro.

Cecília suscitava no século VI o interesse e o entusiasmo pelo martírio e pela virgindade cristã, como Fabíola o suscitou no século passado e continua a suscitar ainda hoje.

Em quase todas as nações modernas se erige hoje o monumento ao Soldado desconhecido. É um preito de gratidão e reconhecimento a tantas vidas nobres e generosas que se imolaram nos campos de batalha pela defesa da honra e integridade da nação Aí são cultuados tantos heróis anônimos e desconhecidos. Aí vem depor suas flores e sua homenagem todos os cidadãos agradecidos.

O monumento ao Soldado desconhecido é o altar da Pátria, onde se cultuam seus mártires e heróis. A festa litúrgica de Santa Cecília também é um grande monumento à Virgindade cristã, ao Martírio cristão dos primeiros séculos. No nome de Santa Cecília a Igreja pretende hoje venerar centenas de virgens e mártires que imolaram sua vida como testemunho de fidelidade a Deus e à Igreja.

Santa Cecília simboliza, portanto, milhares de almas virgens que renunciaram aos prazeres e gozos do mundo para se consagrarem para sempre ao Esposo Imaculado. Ela nos lembra de milhares de mártires que selaram com o seu sangue e com a sua vida esta consagração definitiva. No seu culto a Igreja rende homenagem ao Martírio e à Virgindade cristã.

A festa de Santa Cecília é, pois, a festa dos heróis anônimos do cristianismo - virgens e mártires - e como tal conserva ainda hoje seu profundo significado e sua beleza sem igual.

Nas Atas de Santa Cecília lê-se esta frase: "Enquanto ressoavam os concertos profanos das suas núpcias, Cecília cantava no seu coração um hino de amor a Jesus, seu verdadeiro Esposo". Essas palavras, lidas um tanto por alto, fizeram acreditar no talento musical de Santa Cecília e valeram-lhe o ser padroeira dos músicos. Hoje essa grande mártir e padroeira dos músicos canta louvores ao Senhor no céu.

Santa Cecília, rogai por nós!


 (Vida dos Santos, Padre Rohrbacher, Volume XX, p. 186 à 200)