Chamamos
“Evangelho” a um género literário de escritos do Novo Testamento que tem apenas
quatro exemplares na literatura universal: os Evangelhos segundo Mateus,
Marcos, Lucas e João. Este género de escritos apareceu depois das Cartas
autênticas de Paulo e propôs-se transmitir factos e palavras da vida de Jesus
de Nazaré, que as Cartas não tinham ainda referido. Os Evangelhos
transmitem-nos factos históricos (Dv 19), mas não de maneira “fria” e “isenta”,
à maneira da historiografia moderna; os factos e as palavras de Jesus são
coloridos pela experiência das comunidades da primeira geração cristã, que vai
dos anos 30 a 70.
QUATRO EVANGELHOS
É
esta experiência das comunidades cristãs que vai influir na tonalidade própria
de cada um dos quatro Evangelhos. Por detrás da autoria individual dos
Evangelhos a qual vem da Tradição do séc. II e não se encontra no texto dos
Evangelhos está também uma ou várias comunidades cristãs. A Constituição Dei
Verbum não declara que determinado Evangelho pertence a determinado evangelista
como seu autor. Afirma apenas “a origem apostólica dos quatro Evangelhos (…)
segundo Mateus, Marcos, Lucas e João” (n.° 18); isto é, são-lhes atribuídos. A
Tradição ligava os Evangelhos de Mateus e de João aos respectivos Apóstolos; o
de Lucas a Lucas, companheiro de Paulo; o de Marcos, a um companheiro de Pedro
com esse nome. Com isso, pretendia-se ligar estes escritos à sua fonte, que é
Cristo, e às suas testemunhas oculares. De facto, os Quatro Evangelhos
representam o último estádio da tradição acerca das obras e das palavras de
Jesus.
O
1.° período é constituído pelo próprio Jesus, de 6 a.C. a 30 d.C.. Jesus não
escreveu; apenas anunciou oralmente a mensagem, através dos caminhos da
Galileia, da Samaria e da Judeia, reunindo à sua volta um pequeno grupo de
discípulos a quem iniciou nos mistérios do Reino dos céus (Mt 13,11).
O
2.° período tem o seu início depois da morte e ressurreição de Jesus. Depois da
desilusão (Lc 24,18-21) e do medo (Jo 20,19-23), os Apóstolos, com a força do
Espírito do Pentecostes (Act 2,1-13), lançaram-se no anúncio da mensagem do
Mestre, não se preocupando muito com a escrita mas com a urgência do anúncio do
Reino. Rapidamente se formaram muitas comunidades cristãs, tanto na Palestina
como nas cidades do Império. Este 2.° período, ou primeira geração cristã, vai
dos anos 30 a 70.
O
3.° período é constituído pela segunda geração cristã, ou seja, pelos
discípulos dos Apóstolos e de outras testemunhas oculares de Jesus. Cada um
deles tinha deixado mais marcada alguma tradição acerca de Jesus; agora,
juntam-se as diferentes “tradições” para não se perder a memória do Senhor.
Este período vai dos anos 60 a 100. É neste período que aparece a redacção
definitiva dos Quatro Evangelhos.
A
tonalidade própria de cada um desses Evangelhos, a nível literário e teológico,
faz com que eles sejam semelhantes, mas também diferentes entre si. Essa
tonalidade tem origem no estilo de cada evangelista e na intenção teológica de
responder às necessidades específicas da comunidade a quem dirige o seu
Evangelho.
EVANGELHOS SINÓPTICOS
Por
seguirem o mesmo esquema fundamental de Marcos, chamamos a Marcos, Mateus e
Lucas “Evangelhos Sinópticos”; porque, se os dispusermos em colunas paralelas e
fizermos deles uma leitura de conjunto, deparamos com semelhanças fundamentais
e com diferenças de pormenor. Diferente dos “Evangelhos Sinópticos” é o
Evangelho segundo São João, escrito entre os anos 90-100. Este Evangelho não
segue o esquema histórico-geográfico de Mt, Mc e Lc (que tem origem em Mc) e é
mais abundante em discursos de Jesus, com base nos factos da sua vida. Aparece,
por isso, como o Evangelho teológico por excelência. O ambiente onde nasceu o
Evangelho segundo São João e a sua relação com os Sinópticos continua a ser
objecto de estudo por parte dos especialistas na matéria.
PORQUÊ QUATRO
EVANGELHOS?
A
Igreja aceitou apenas os Quatro Evangelhos, escritos entre os anos 60 e 100.
Porquê apenas quatro?
Parece
que desde o princípio da Igreja houve uma certa propensão para o uso de um
único Evangelho. Isso não significa que se negasse a autoridade dos outros.
Naturalmente, os cristãos vindos do Judaísmo preferiam o Evangelho de Mateus,
escrito sobretudo para lhes falar da relação de Cristo com a Lei de Moisés (Mt
5,17-7,29). Talvez tenham utilizado este Evangelho em discussões com os outros
cristãos vindos da civilização helenista, que sustentavam não ser necessária a
observância da Lei de Moisés (AT).
Marcião
é também um caso especial a este respeito: usa o Evangelho de Lucas por lhe
parecer o Evangelho que fala do amor de Deus, presente entre os homens em Jesus
Cristo; mesmo assim, elimina algumas partes onde esse amor não lhe parece
evidente ou onde se fala do Antigo Testamento, que ele rejeitou em bloco.
O
movimento gnóstico utilizou e manipulou sobretudo o Evangelho de João (ver Jo
14,2-3; 17,16). Tassiano pretendia um compromisso entre as duas tendências (o
uso de um único Evangelho e os quatro), harmonizando-os num só (o Diatesseron).
Esta harmonização foi largamente seguida nas igrejas siríacas do Oriente, mas
praticamente rejeitada nas igrejas ocidentais de língua grega e latina. De
facto, fazendo dos Quatro Evangelhos apenas um só, destruíam-se as quatro
teologias sobre Jesus, ficando apenas uma “História de Jesus”. Ora os
Evangelhos são muito mais do que a História de Jesus.
EVANGELHOS APÓCRIFOS E
FORMAÇÃO DO CÂNON
Muitos
outros “evangelhos” apócrifos isto é, falsos conheceram uma certa celebridade,
a partir do séc. II. Os mais conhecidos foram: “Evangelho dos Hebreus”,
“Evangelho dos Ebionitas”, “Evangelho de Pedro”, “Evangelho de Tomé” e
Proto-Evangelho de Tiago. De alguns restam apenas fragmentos e breves notícias.
Eram histórias populares mais ou menos edificantes sobre factos da vida de
Jesus ou simples colecções de algumas palavras a Ele atribuídas. A Igreja soube
sempre separar o trigo do joio, a partir de três critérios necessários para um
Evangelho ser autêntico: 1) ter uma ligação directa com o grupo dos Apóstolos;
nasce daqui a atribuição de cada um deles a um nome importante, se possível,
testemunha ocular de Jesus: Evangelho segundo Mateus, segundo Marcos, segundo
Lucas e segundo João (critério apostólico); 2) incluir palavras e factos
históricos da vida de Jesus, e não apenas um destes conteúdos (critério
literário); 3) ser utilizado na pregação e na liturgia da Igreja universal
(critério litúrgico).
A
partir destas exigências, muito cedo foram excluídas da Igreja essas histórias
que se apresentavam como “evangelhos”. A luta contra os hereges, sobretudo
contra Marcião, na segunda metade do séc. II, forneceu à Igreja uma motivação
mais para encontrar e colocar ao alcance dos cristãos a colecção ou Cânon dos
livros seguramente inspirados pelo Espírito Santo.
De
qualquer modo, o Cânon só progressivamente, e a partir dos princípios já
referidos, se foi formando, entre o séc. II e IV. Assim, as igrejas de língua
siríaca utilizavam, por vezes, o Diatesseron em vez dos Quatro Evangelhos e não
incluíam as Cartas Católicas mais pequenas (2 e 3 Jo, Jd, 2 Pe), tal como o
Apocalipse. Aliás, o último livro da Bíblia foi também o último a entrar no
Cânon, devido à desconfiança da Igreja acerca deste género de literatura, que
se prestava a muitas manipulações da Palavra de Deus, como acontece ainda hoje.
Neste sentido, é a Igreja que, pelo seu sentido da fé, aceita no seu seio os
livros inspirados por Deus; mas é também a Igreja quem reconhece oficialmente,
para utilidade dos fiéis, o Cânon (norma) dos livros inspirados pelo Espírito
Santo.
Fonte: Aleteia