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quinta-feira, fevereiro 08, 2024

ARTIGO SOBRE O LIVRO DO CARDEAL SARAH





O título é do mais sugestivo: a força do silencio, contra a ditadura do ruido. O autor, um Cardeal Africano que foi Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a disciplina dos sacramentos, também me provocou. Decidi ler o livro sabendo que encontraria, sem dúvida, conselhos de índole espiritual mas também muitos outros aspectos aplicáveis na vida quotidiana, na trincheira. Não me enganei, li, gostei. Tanto que não posso evitar fazer alguns comentários -sem pretensão de resumir um livro que deve ser lido e meditado- a modo de instigação, e como matéria de reflexão: pessoal, em primeiro lugar, e que talvez possa ajudar outros.

Logo no início, Sarah situa o tema da necessidade do silêncio perante o tumulto em que vivemos: “ Nosso mundo deixou de ouvir a Deus, porque não para de falar em ritmo letal e velocidade para não dizer nada. A civilização moderna não sabe calar. Vive em monólogo permanente. A sociedade pós-moderna rejeita o passado e considera o presente um vil objeto de consumo: contempla o futuro entre os raios de um progresso quase obsessivo. Seu sonho, transformado em triste realidade, foi trancar o silêncio em um calabouço úmido e escuro. A partir de então, instaurou-se uma ditadura da palavra, uma ditadura da ênfase verbal. Naquele cenário sombrio, resta apenas uma chaga purulenta de palavras mecânicas, sem alívio, sem verdade e sem fundamento. Muitas vezes a verdade não passa de uma criação midiática enganosa e consolidada por imagens e testemunhos inventados”.

Obviamente, o silêncio é condição indispensável para escutar a Deus, de acordo com o cardeal Sarah, que cita oportunamente outro cardeal, Newman: “Quanto mais perto estamos do Espírito Santo, mais silenciosos ficamos; e, quanto mais nos afastamos Dele, mais charlatães”. Mas também é necessário para funcionar na vida, já que “o silêncio da escuta é atenção, é dom de si e sinal de elegância moral”. E acrescenta: “O perigo atual reside no ativismo desenfreado do mundo moderno. Somos constantemente chamados a lutar, a fazer campanha, a derrubar o adversário, a destruí-lo. Na verdade, o homem é encorajado a adicionar mais mal ao mal, quando o joio e o trigo devem crescer. O silêncio nos dará paciência para esperar o momento em que as ervas daninhas morrerão sozinhas. Graças ao silêncio saberemos acompanhar o tempo e esperar com perseverança a hora de Deus para estabelecer uma aliança com Ele e agir sob a sua batuta. Há tempo de lutar e tempo de calar. Se realmente dominássemos a pedagogia do silêncio que vem de Deus, teríamos um pouco da paciência do Céu”.

Silencio e elegância para poder tratar os outros convenientemente: “O silêncio é essa última trincheira que ninguém pode atravessar, a única sala onde encontrar a paz, o estado em que o sofrimento baixa os braços por um instante. O silêncio fortalece nossa fraqueza. O silêncio nos arma de paciência. O silêncio em Deus devolve a coragem (…) Penso também nas guerras da calúnia e da difamação. A palavra pode matar, a linguagem pode matar, mas Deus nos educa no perdão. Nos ensina a orar por nossos inimigos. Cerca nossos corações com uma cerca de ternura para evitar que o ressentimento o manche. E murmura incessantemente: «Os discípulos do meu Filho bem-amado não têm inimigos. Nem seu coração deve ter inimigos.”

O problema do mal e o aparente silêncio de Deus perante a injustiça é tema abordado com particular acerto, invocando um filósofo judeu alemão que colabora nesta resposta: “Hans Jonas, tentou responder a esta dolorosa pergunta em seu livro O Conceito de Deus depois de Auschwitz: ‘O que Auschwitz tem a acrescentar ao que sempre se soube sobre os extremos do horrível e terrível que os seres humanos podem e sempre infligiram aos outros? Naturalmente, Hans Jonas questiona Deus: «Deus permitiu. Que tipo de Deus poderia permitir isso? Deus Todo-Poderoso não interveio para impedir a matança selvagem de seu povo. E por que ele permitiu? Hans Jonas responde: “Para que o mundo exista, Deus renuncia ao seu próprio ser.” O que quer dizer com isso? «Para dar espaço ao mundo, o Infinito teve que se recolher em si mesmo e assim deixar nascer fora Dele o vazio, o nada, no qual e a partir do qual poderia criar o mundo. Sem este recolhimento em si mesmo, nada mais poderia existir ao lado de Deus». A sua conclusão é fácil de adivinhar: «Ao fazer isto, Deus, desde o momento da criação, torna-se um Deus sofredor, porque terá de sofrer por causa do homem e ser decepcionado por ele. Ele também será um Deus preocupado, simplesmente porque confiou o mundo a outros agentes além dele mesmo, a agentes livres. Em suma, ele é um Deus em perigo, um Deus em seu próprio perigo. Portanto, Deus não é um Deus todo-poderoso. Para que a bondade de Deus seja compatível com a existência do mal, é necessário que ele não seja todo-poderoso. Mais exatamente: esse Deus deve ter renunciado ao poder. No simples fato de admitir a liberdade humana reside uma renúncia ao poder”.

Parágrafo emocionante que é complementado por uma lembrança esclarecedora, na mesma sintonia do raciocínio de H. Jonas: “Este problema me faz lembrar a carta de uma mãe movida pela ideia da vulnerabilidade de Deus: ‘Quando meus filhos eram pequenos, quem pensava por eles e decidia por eles era eu. Tudo era fácil: a única coisa em jogo era a minha liberdade. Mas, a certa altura, quando percebi que o meu papel consistia em habituá-los a escolher, senti – assim que aceitei – que a inquietação me invadiu. Ao deixar que meus filhos tomem decisões e, portanto, corram riscos, ao mesmo tempo também arrisquei ver outras liberdades além da minha aparecerem (…)Assim consegui vislumbrar como é possível que Deus “Pai” sofra. Nós somos seus filhos. Ele quer que sejamos livres para nos construirmos e a Infinidade do seu Amor o impede de qualquer coerção. Amor perfeito, sem traço de cálculo, mas que implica a aceitação de um sofrimento inerente àquela liberdade total que Ele quer para nós”

O cardeal, homem estudado, sabe integrar as culturas variadas. E embora não faça concessões (por exemplo, quando diz, eu sou africano mas a liturgia da Igreja não é o local para promover o meu folclore), invoca por exemplo tradições do Islã mítico. É o caso da história de Suturá, uma boa mulher, que foi visitar um sábio porque estava muito irritável e queria uma benção dele para tornar-se doce, amável, paciente. O menino de 3 anos acompanhou a mãe e, enquanto ela falava com o sábio, bateu nela com uma tábua. Ela sorriu, deu um tapa carinhoso no menino e comentou com o sábio que era um menino mau tratando assim a própria mãe. O sábio a fez notar que, embora estivesse irritada e sem paciência, não o tinha demonstrado com o episódio do menino. ‘Mas é somente uma criança, e meu filho’ -disse ela. E o sábio: ‘ Você não precisa de benção, mas apenas dessa atitude maternal com tudo o que você diz que a irrita’. A mulher seguiu o conselho e morreu com fama de santidade e de imensa paciência.

O silêncio é o que facilita o próprio conhecimento, do qual fugimos sistematicamente, mesmo sem percebermos. “É paradoxal que o silêncio externo e a solidão, cujo objetivo é facilitar o silêncio interno, comecem por trazer à tona todo o barulho que há em nós. Se você carrega um rádio no bolso, é possível que no meio da agitação de uma cidade ou de uma rua você não perceba, pois seu som se mistura com o ambiente. Mas se entrarem em uma igreja, não demorará muito para que percebam uma tagarelice constante saindo de seus bolsos: a primeira coisa que farão é tentar desligá-la. Infelizmente, não há botão para diminuir a tagarelice da nossa imaginação… A primeira fase é estarmos atentos a ela, por menos que gostemos (…)  O narcisismo do excesso de palavras é uma tentação de Satanás. Ela carrega uma forma de exterioridade detestável em que o homem jaz na superfície de si mesmo fazendo barulho para não ouvir Deus (…)O exibicionismo espiritual, que consiste em exteriorizar os tesouros da alma expondo-os desavergonhadamente, indica uma trágica pobreza humana e a manifestação de nossa superficialidade. Muitas vezes falamos porque acreditamos que os outros esperam de nós. Não sabemos ficar calados porque nossa represa interior está tão rachada que não detém mais a maré de nossas palavras. O silêncio de Deus deve nos ensinar que devemos ficar em silêncio com frequência”

Conhecer-se e conhecer a Deus, que Santo Agostinho destacou com a sua magnífica frase: noverim te, noverim me. O que exige paz e sossego, também em palavras do bispo de Hipona: “Para os amigos deste mundo não há nada mais difícil do que não trabalhar”. E o cardeal glossa a seguir: “Eu creio que Deus fala em silêncio. Sua discrição, seus modos delicados, infinitamente respeitosos com nossa liberdade, não param de me surpreender. Somos frágeis como vidro, e Deus modera seu poder e sua palavra para adaptá-los à nossa fraqueza(…) O amor não é imposto: não pode ser imposto. E, como Deus é amor infinito, seu respeito e delicadeza nos desconcertam. Justamente por estar presente em todos os lugares, é escondido com ainda mais cuidado, para não se impõe (…) Deus é uma realidade profundamente interna ao homem e, portanto, o homem só pode encontrá-lo evitando sair de si mesmo, não cedendo ao fascínio da exterioridade e voltando-se para a interioridade. O caminho que conduz a Deus é o da interioridade. Nada que é de Deus faz barulho. Nada é violento: tudo é delicadeza, pureza e silêncio”.

Não poderiam faltar no livro, advertências relacionadas com o culto divino, tarefa que o autor desempenhou com afinco, e pilotou com conceitos claros: “Hoje em dia, muitas vezes tenho a impressão de que o culto católico passou da adoração a Deus para a ostentação do padre, dos ministros e dos fiéis. Eles conseguiram impor aplausos, mesmo nos funerais, substituindo o luto que costuma ser expresso com lágrimas: Cristo não chorou a morte de Lázaro? Quando o aplauso irrompe na liturgia, é um sinal seguro de que a Igreja perdeu a essência do sagrado (…) Às vezes tenho a impressão de que os celebrantes temem tanto a oração interior pessoal e livre dos fiéis que não param de falar desde o início da celebração até o final para não perder o controle (..) A celebração voltada para o Oriente facilita o silêncio. De fato, para o celebrante a tentação de monopolizar a palavra é menor. Voltado para o Senhor, é menos provável que se torne um professor que passa toda a Missa dando aula, reduzindo o altar a uma plataforma cujo eixo não seria a cruz, mas o microfone. Estou convencido de que nós sacerdotes não usamos o mesmo tom de voz quando celebramos voltados para o Oriente. Sentimo-nos muito menos tentados a virar espetáculo, a acreditar que somos atores!, como diz o Papa Francisco (…)A liturgia não é um lugar para celebrações humanas, nem para paixões, nem para cadeias de palavras dissonantes, mas apenas para adoração. Hoje o ruído invade muitas facetas da vida dos homens. A Igreja estaria cometendo um grave erro se acrescentasse mais barulho ao barulho. O amor não precisa de palavras”.

O silêncio configura-se também em resposta para os males do mundo, contra o que um ativismo febril poderia supor. “Quando o homem exerce violência contra o homem, a reconstrução é sempre difícil, longa e incerta. Quando se trata do mal, a humanidade é capaz de refinamento e imaginação inigualáveis. No entanto, o padre Jacques Mourad, um padre católico sírio mantido refém  na Síria por cinco meses, pôde dizer ao sair daquele inferno: ‘Deus me concedeu duas coisas: silêncio e bondade’. (…)Às vezes, os ditadores estão sinceramente convencidos de que estão fazendo a coisa certa. Aleksandr Solzhenitsyn explica esplendidamente como os líderes soviéticos estavam convencidos de que estavam conduzindo o país em direção ao paraíso terrestre”. 

Vale a pena trazer algumas das muitas citações que o cardeal Sarah sublinha no seu livro. Mas, antes, copio um parágrafo que acerta na essência do porque fugimos do silêncio: “Longe de Deus, o silêncio é um duro encontro consigo mesmo e com as realidades obscuras que vivem no fundo da nossa alma. A partir daí, o homem entra numa lógica que se assemelha a uma negação da realidade. Ele fica bêbado com todos os ruídos possíveis para esquecer quem ele é. O homem pós-moderno quer anestesiar seu próprio ateísmo”.

E citando autores variados, acrescenta: “O mais importante não é o que dizemos, mas o que Deus nos diz e o que diz através de nós (…) São João Crisóstomo assim formula esta regra: ‘Fala só quando é mais útil falar do que calar’. Santo Efrem concorda com ele e insiste: ‘Fala muito com Deus e pouco com os homens’. E no final, dois escritores. Um, para nos proteger contra a ditadura do ruído e do barulho : “se existe o direito à informação, também existe o direito de não ser informado” (Solzhenitsyn). E outro para lembrar que a felicidade é caminho para encontrar a Deus: “Para encontrar Deus é preciso ser feliz, porque quem o inventa com angústia vai muito rápido e pouco busca a intimidade de sua ardente ausência” (R.M. Rilke).

Concluindo, um último pensamento que fecha com elegância estes comentários: “Se caminhamos para Deus, chega um momento em que a palavra se torna inútil e perde o interesse, porque a única coisa que importa é a contemplação. O silêncio não é o exílio da palavra. É o amor da Palavra única. A abundância de palavras, ao contrário, é o sintoma da dúvida. A descrença é sempre falante”.  Calar e meditar, é o que se impõe no final da leitura deste livro peculiar. Ao tempo que invocamos a frase do salmo, tão necessária nos dias de hoje: In silentio et in spe, erit fortitudo vestra. Nossa fortaleza está no silêncio que alimenta a esperança!


Fonte: https://pablogonzalezblasco.com.br/2022/11/25/card-robert-sarah-a-forca-do-silencio/