O
título é do mais sugestivo: a força do silencio, contra a ditadura do ruido. O
autor, um Cardeal Africano que foi Prefeito da Congregação para o Culto Divino
e a disciplina dos sacramentos, também me provocou. Decidi ler o livro sabendo
que encontraria, sem dúvida, conselhos de índole espiritual mas também muitos
outros aspectos aplicáveis na vida quotidiana, na trincheira. Não me enganei,
li, gostei. Tanto que não posso evitar fazer alguns comentários -sem pretensão
de resumir um livro que deve ser lido e meditado- a modo de instigação, e como
matéria de reflexão: pessoal, em primeiro lugar, e que talvez possa ajudar
outros.
Logo
no início, Sarah situa o tema da necessidade do silêncio perante o tumulto em
que vivemos: “ Nosso mundo deixou de ouvir a Deus, porque não para de falar em
ritmo letal e velocidade para não dizer nada. A civilização moderna não sabe
calar. Vive em monólogo permanente. A sociedade pós-moderna rejeita o passado e
considera o presente um vil objeto de consumo: contempla o futuro entre os
raios de um progresso quase obsessivo. Seu sonho, transformado em triste
realidade, foi trancar o silêncio em um calabouço úmido e escuro. A partir de
então, instaurou-se uma ditadura da palavra, uma ditadura da ênfase verbal.
Naquele cenário sombrio, resta apenas uma chaga purulenta de palavras
mecânicas, sem alívio, sem verdade e sem fundamento. Muitas vezes a verdade não
passa de uma criação midiática enganosa e consolidada por imagens e testemunhos
inventados”.
Obviamente,
o silêncio é condição indispensável para escutar a Deus, de acordo com o
cardeal Sarah, que cita oportunamente outro cardeal, Newman: “Quanto mais perto
estamos do Espírito Santo, mais silenciosos ficamos; e, quanto mais nos
afastamos Dele, mais charlatães”. Mas também é necessário para funcionar na
vida, já que “o silêncio da escuta é atenção, é dom de si e sinal de elegância
moral”. E acrescenta: “O perigo atual reside no ativismo desenfreado do mundo
moderno. Somos constantemente chamados a lutar, a fazer campanha, a derrubar o
adversário, a destruí-lo. Na verdade, o homem é encorajado a adicionar mais mal
ao mal, quando o joio e o trigo devem crescer. O silêncio nos dará paciência
para esperar o momento em que as ervas daninhas morrerão sozinhas. Graças ao
silêncio saberemos acompanhar o tempo e esperar com perseverança a hora de Deus
para estabelecer uma aliança com Ele e agir sob a sua batuta. Há tempo de lutar
e tempo de calar. Se realmente dominássemos a pedagogia do silêncio que vem de
Deus, teríamos um pouco da paciência do Céu”.
Silencio
e elegância para poder tratar os outros convenientemente: “O silêncio é essa
última trincheira que ninguém pode atravessar, a única sala onde encontrar a
paz, o estado em que o sofrimento baixa os braços por um instante. O silêncio
fortalece nossa fraqueza. O silêncio nos arma de paciência. O silêncio em Deus
devolve a coragem (…) Penso também nas guerras da calúnia e da difamação. A
palavra pode matar, a linguagem pode matar, mas Deus nos educa no perdão. Nos
ensina a orar por nossos inimigos. Cerca nossos corações com uma cerca de
ternura para evitar que o ressentimento o manche. E murmura incessantemente:
«Os discípulos do meu Filho bem-amado não têm inimigos. Nem seu coração deve
ter inimigos.”
O
problema do mal e o aparente silêncio de Deus perante a injustiça é tema
abordado com particular acerto, invocando um filósofo judeu alemão que colabora
nesta resposta: “Hans Jonas, tentou responder a esta dolorosa pergunta em seu
livro O Conceito de Deus depois de Auschwitz: ‘O que Auschwitz tem a
acrescentar ao que sempre se soube sobre os extremos do horrível e terrível que
os seres humanos podem e sempre infligiram aos outros? Naturalmente, Hans Jonas
questiona Deus: «Deus permitiu. Que tipo de Deus poderia permitir isso? Deus
Todo-Poderoso não interveio para impedir a matança selvagem de seu povo. E por
que ele permitiu? Hans Jonas responde: “Para que o mundo exista, Deus renuncia
ao seu próprio ser.” O que quer dizer com isso? «Para dar espaço ao mundo, o
Infinito teve que se recolher em si mesmo e assim deixar nascer fora Dele o
vazio, o nada, no qual e a partir do qual poderia criar o mundo. Sem este
recolhimento em si mesmo, nada mais poderia existir ao lado de Deus». A sua
conclusão é fácil de adivinhar: «Ao fazer isto, Deus, desde o momento da
criação, torna-se um Deus sofredor, porque terá de sofrer por causa do homem e
ser decepcionado por ele. Ele também será um Deus preocupado, simplesmente
porque confiou o mundo a outros agentes além dele mesmo, a agentes livres. Em
suma, ele é um Deus em perigo, um Deus em seu próprio perigo. Portanto, Deus
não é um Deus todo-poderoso. Para que a bondade de Deus seja compatível com a
existência do mal, é necessário que ele não seja todo-poderoso. Mais exatamente:
esse Deus deve ter renunciado ao poder. No simples fato de admitir a liberdade
humana reside uma renúncia ao poder”.
Parágrafo
emocionante que é complementado por uma lembrança esclarecedora, na mesma
sintonia do raciocínio de H. Jonas: “Este problema me faz lembrar a carta de
uma mãe movida pela ideia da vulnerabilidade de Deus: ‘Quando meus filhos eram
pequenos, quem pensava por eles e decidia por eles era eu. Tudo era fácil: a
única coisa em jogo era a minha liberdade. Mas, a certa altura, quando percebi
que o meu papel consistia em habituá-los a escolher, senti – assim que aceitei
– que a inquietação me invadiu. Ao deixar que meus filhos tomem decisões e,
portanto, corram riscos, ao mesmo tempo também arrisquei ver outras liberdades
além da minha aparecerem (…)Assim consegui vislumbrar como é possível que Deus
“Pai” sofra. Nós somos seus filhos. Ele quer que sejamos livres para nos
construirmos e a Infinidade do seu Amor o impede de qualquer coerção. Amor
perfeito, sem traço de cálculo, mas que implica a aceitação de um sofrimento
inerente àquela liberdade total que Ele quer para nós”
O
cardeal, homem estudado, sabe integrar as culturas variadas. E embora não faça
concessões (por exemplo, quando diz, eu sou africano mas a liturgia da Igreja
não é o local para promover o meu folclore), invoca por exemplo tradições do
Islã mítico. É o caso da história de Suturá, uma boa mulher, que foi visitar um
sábio porque estava muito irritável e queria uma benção dele para tornar-se
doce, amável, paciente. O menino de 3 anos acompanhou a mãe e, enquanto ela
falava com o sábio, bateu nela com uma tábua. Ela sorriu, deu um tapa carinhoso
no menino e comentou com o sábio que era um menino mau tratando assim a própria
mãe. O sábio a fez notar que, embora estivesse irritada e sem paciência, não o
tinha demonstrado com o episódio do menino. ‘Mas é somente uma criança, e meu
filho’ -disse ela. E o sábio: ‘ Você não precisa de benção, mas apenas dessa
atitude maternal com tudo o que você diz que a irrita’. A mulher seguiu o
conselho e morreu com fama de santidade e de imensa paciência.
O
silêncio é o que facilita o próprio conhecimento, do qual fugimos
sistematicamente, mesmo sem percebermos. “É paradoxal que o silêncio externo e
a solidão, cujo objetivo é facilitar o silêncio interno, comecem por trazer à
tona todo o barulho que há em nós. Se você carrega um rádio no bolso, é
possível que no meio da agitação de uma cidade ou de uma rua você não perceba,
pois seu som se mistura com o ambiente. Mas se entrarem em uma igreja, não
demorará muito para que percebam uma tagarelice constante saindo de seus
bolsos: a primeira coisa que farão é tentar desligá-la. Infelizmente, não há
botão para diminuir a tagarelice da nossa imaginação… A primeira fase é
estarmos atentos a ela, por menos que gostemos (…) O narcisismo do excesso de palavras é uma
tentação de Satanás. Ela carrega uma forma de exterioridade detestável em que o
homem jaz na superfície de si mesmo fazendo barulho para não ouvir Deus (…)O
exibicionismo espiritual, que consiste em exteriorizar os tesouros da alma
expondo-os desavergonhadamente, indica uma trágica pobreza humana e a
manifestação de nossa superficialidade. Muitas vezes falamos porque acreditamos
que os outros esperam de nós. Não sabemos ficar calados porque nossa represa
interior está tão rachada que não detém mais a maré de nossas palavras. O
silêncio de Deus deve nos ensinar que devemos ficar em silêncio com frequência”
Conhecer-se
e conhecer a Deus, que Santo Agostinho destacou com a sua magnífica frase:
noverim te, noverim me. O que exige paz e sossego, também em palavras do bispo
de Hipona: “Para os amigos deste mundo não há nada mais difícil do que não
trabalhar”. E o cardeal glossa a seguir: “Eu creio que Deus fala em silêncio.
Sua discrição, seus modos delicados, infinitamente respeitosos com nossa
liberdade, não param de me surpreender. Somos frágeis como vidro, e Deus modera
seu poder e sua palavra para adaptá-los à nossa fraqueza(…) O amor não é
imposto: não pode ser imposto. E, como Deus é amor infinito, seu respeito e
delicadeza nos desconcertam. Justamente por estar presente em todos os lugares,
é escondido com ainda mais cuidado, para não se impõe (…) Deus é uma realidade
profundamente interna ao homem e, portanto, o homem só pode encontrá-lo
evitando sair de si mesmo, não cedendo ao fascínio da exterioridade e
voltando-se para a interioridade. O caminho que conduz a Deus é o da
interioridade. Nada que é de Deus faz barulho. Nada é violento: tudo é
delicadeza, pureza e silêncio”.
Não
poderiam faltar no livro, advertências relacionadas com o culto divino, tarefa
que o autor desempenhou com afinco, e pilotou com conceitos claros: “Hoje em
dia, muitas vezes tenho a impressão de que o culto católico passou da adoração
a Deus para a ostentação do padre, dos ministros e dos fiéis. Eles conseguiram
impor aplausos, mesmo nos funerais, substituindo o luto que costuma ser
expresso com lágrimas: Cristo não chorou a morte de Lázaro? Quando o aplauso
irrompe na liturgia, é um sinal seguro de que a Igreja perdeu a essência do
sagrado (…) Às vezes tenho a impressão de que os celebrantes temem tanto a
oração interior pessoal e livre dos fiéis que não param de falar desde o início
da celebração até o final para não perder o controle (..) A celebração voltada
para o Oriente facilita o silêncio. De fato, para o celebrante a tentação de
monopolizar a palavra é menor. Voltado para o Senhor, é menos provável que se
torne um professor que passa toda a Missa dando aula, reduzindo o altar a uma
plataforma cujo eixo não seria a cruz, mas o microfone. Estou convencido de que
nós sacerdotes não usamos o mesmo tom de voz quando celebramos voltados para o
Oriente. Sentimo-nos muito menos tentados a virar espetáculo, a acreditar que
somos atores!, como diz o Papa Francisco (…)A liturgia não é um lugar para
celebrações humanas, nem para paixões, nem para cadeias de palavras
dissonantes, mas apenas para adoração. Hoje o ruído invade muitas facetas da
vida dos homens. A Igreja estaria cometendo um grave erro se acrescentasse mais
barulho ao barulho. O amor não precisa de palavras”.
O
silêncio configura-se também em resposta para os males do mundo, contra o que
um ativismo febril poderia supor. “Quando o homem exerce violência contra o
homem, a reconstrução é sempre difícil, longa e incerta. Quando se trata do
mal, a humanidade é capaz de refinamento e imaginação inigualáveis. No entanto,
o padre Jacques Mourad, um padre católico sírio mantido refém na Síria por cinco meses, pôde dizer ao sair
daquele inferno: ‘Deus me concedeu duas coisas: silêncio e bondade’. (…)Às
vezes, os ditadores estão sinceramente convencidos de que estão fazendo a coisa
certa. Aleksandr Solzhenitsyn explica esplendidamente como os líderes
soviéticos estavam convencidos de que estavam conduzindo o país em direção ao
paraíso terrestre”.
Vale
a pena trazer algumas das muitas citações que o cardeal Sarah sublinha no seu
livro. Mas, antes, copio um parágrafo que acerta na essência do porque fugimos
do silêncio: “Longe de Deus, o silêncio é um duro encontro consigo mesmo e com
as realidades obscuras que vivem no fundo da nossa alma. A partir daí, o homem
entra numa lógica que se assemelha a uma negação da realidade. Ele fica bêbado
com todos os ruídos possíveis para esquecer quem ele é. O homem pós-moderno
quer anestesiar seu próprio ateísmo”.
E
citando autores variados, acrescenta: “O mais importante não é o que dizemos,
mas o que Deus nos diz e o que diz através de nós (…) São João Crisóstomo assim
formula esta regra: ‘Fala só quando é mais útil falar do que calar’. Santo
Efrem concorda com ele e insiste: ‘Fala muito com Deus e pouco com os homens’.
E no final, dois escritores. Um, para nos proteger contra a ditadura do ruído e
do barulho : “se existe o direito à informação, também existe o direito de não
ser informado” (Solzhenitsyn). E outro para lembrar que a felicidade é caminho
para encontrar a Deus: “Para encontrar Deus é preciso ser feliz, porque quem o
inventa com angústia vai muito rápido e pouco busca a intimidade de sua ardente
ausência” (R.M. Rilke).
Concluindo, um último pensamento que fecha com elegância estes comentários: “Se caminhamos para Deus, chega um momento em que a palavra se torna inútil e perde o interesse, porque a única coisa que importa é a contemplação. O silêncio não é o exílio da palavra. É o amor da Palavra única. A abundância de palavras, ao contrário, é o sintoma da dúvida. A descrença é sempre falante”. Calar e meditar, é o que se impõe no final da leitura deste livro peculiar. Ao tempo que invocamos a frase do salmo, tão necessária nos dias de hoje: In silentio et in spe, erit fortitudo vestra. Nossa fortaleza está no silêncio que alimenta a esperança!
Fonte: https://pablogonzalezblasco.com.br/2022/11/25/card-robert-sarah-a-forca-do-silencio/