quinta-feira, março 23, 2023

EIS O TEMPO DE CONVERSÃO







Nesse tempo da Quaresma, a Igreja muito nos fala de conversão. E esse foi o tema dos primórdios da pregação de Jesus: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15).

Conversão quer dizer mudança. E a palavra grega usada no Evangelho - “metanoia” - significa mudança de mentalidade. Mais do que o comportamento, é preciso mudar a mentalidade, pois dela procede o comportamento.

A mentalidade do tempo de Jesus era pagã: prazer, ganância e orgulho. Desejo de gozar a vida, de possuir bens materiais e de soberba, muitas vezes confundida com o poder. Tudo isso se concretizava no dinheiro, com o qual se pode comprar o prazer, os bens e o poder. Por isso, Jesus pregava: “Não podeis servir a Deus e ao ‘Dinheiro’” (Mt 6,24).

Opondo-se a essa mentalidade, Jesus propunha a mortificação da carne, o espírito de pobreza, o desapego dos bens materiais e a humildade, dando Ele mesmo o exemplo dessas virtudes. Não foi fácil a pregação desses temas por Ele e pelos Apóstolos no ambiente pagão. E mesmo no ambiente religioso dos judeus essas virtudes eram desconhecidas. Ali também, sob outra roupagem, imperava a impureza, a ganância e o orgulho.

Hoje vivemos no neopaganismo, onde esses vícios imperam e onde são raras as virtudes que lhes são contrárias. Por isso, neste tempo da Quaresma, a Igreja nos leva a refletir sobre a conversão, ou seja, o combate espiritual contra esses vícios.

“Porque tudo o que há no mundo – o desejo da carne, o desejo dos olhos e a ostentação da riqueza - não vem do Pai, mas do mundo”, ensina São João, Apóstolo (1Jo 2,16).

A concupiscência da carne significa não os prazeres ordenados por Deus, dentro dos seus legítimos limites, mas os desejos desordenados da carne. É a sensualidade, o amor desregrado dos prazeres, que provocam em nós o conflito interior de que fala São Paulo: “Descubro em mim esta lei: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Como homem interior, ponho toda a minha satisfação na Lei de Deus; mas sinto em meus membros outra lei, que luta contra a lei de minha mente e me aprisiona na lei do pecado, que está nos meus membros...”  (Rm 7, 21-23). Daí a necessidade, com a graça de Deus, do combate interior: “Todo atleta se impõe todo tipo de disciplina. Eles assim procedem, para conseguirem uma coroa corruptível. Quanto a nós, buscamos uma coroa incorruptível...” (1Cor 9, 25).

A concupiscência dos olhos é a ambição de possuir. “A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé e se afligem com inúmeros sofrimentos” (1Tm 6,10). Não é essa a mentalidade subjacente a essa epidemia de corrupção que assistimos?

E a soberba da vida, que vem a ser o orgulho, o egoísmo, que gera o ciúme, a inveja e a ira. “O princípio de todo o pecado é a soberba” (Eclo 10,15).

Convertamo-nos e combatamos esse “bom combate”.

 

 

Fonte: Dom Fernando Arêas Rifan


segunda-feira, março 20, 2023

IV DOMINGO DA QUARESMA








Neste dia em que a liturgia nos convida à alegria, enquanto continuamos o nosso itinerário penitencial da quaresma, lancemos o nosso olhar para a narração do Evangelho que nos mostra a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41). O milagre narrado pelo evangelista São João, onde mostra a história de um homem que, pelas mãos de Jesus, vai passando das trevas de sua cegueira física para a visão ocular da luz, e desta, para a iluminação da fé em Cristo.

Inicialmente podemos lembrar que os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas, de acordo com a teologia oficial, como resultado do pecado. Os rabinos da época chegavam a discutir de onde vinha o pecado de alguém que nascia com uma deficiência: se o defeito era o resultado de um pecado dos pais, ou se era o resultado de um pecado cometido pela criança ainda no ventre da mãe.

Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave: uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimônias religiosas no Templo.

Jesus rejeita esta teoria e afirma: “Nem ele, nem seus pais pecaram” (Jo 9,3). Diante do homem marcado por sua limitação e pelo sofrimento, Jesus não pensa em possíveis culpas, mas na bondade de Deus que criou o homem para a vida.  Jesus aproveita esta ocasião para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é a de ser “a luz do mundo” e encher de luz a vida dos que vivem nas trevas. No texto vemos ainda que Jesus passa das palavras aos atos e prepara-se para restituir a vista ao cego (v. 6-7), começando por cuspir no chão, fazer lodo com a saliva e ungir com esse lodo os olhos do cego. O gesto de fazer lodo reproduz, evidentemente, o gesto criador de Deus, que do barro, modelou o homem (cf. Gn 2,7).  A saliva transmitia a própria força ou energia vital, equivalente ao sopro de Deus, que deu vida a Adão (cf. Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua própria energia vital, repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é criar um homem novo, animado pelo Espírito de Jesus. No entanto, a cura não é imediata: requer-se a cooperação do enfermo. “Vai lavar-te na piscina de Siloé”; diz Jesus ao cego.

A palavra “siloé” vem do hebraico e significa “enviado”, como explica o próprio evangelista São Jão.  O cego, para recuperar a visão deve lavar-se, por ordem de Jesus, na piscina chamada “enviado” e, com isto, o homem começa a ver.  A humanidade, para poder “ver” as obras de Deus precisa também banhar-se no “enviado do Pai” que é o próprio Jesus. A fé, a aceitação de Cristo como o enviado do Pai e Salvador, abre nossa vida para uma nova visão de Deus e do mundo.

Pelo sacramento do batismo saímos das trevas para viver na luz, como homens novos.  Jesus, ao enviar o jovem cego à piscina de Siloé, quer mostrar que os olhos da fé começam a se abrir através do batismo, quando recebemos precisamente o dom da fé.  Por isso, na antiguidade o batismo se chamava também “iluminação”, e receber o batismo é ser iluminado.

A imagem do cego, dependente e inválido, transformado em homem livre e independente, leva os seus concidadãos a interrogar-se. Essa cura suscita uma discussão, pois Jesus a realiza no dia de sábado, violando, segundo os fariseus, o preceito festivo. Deste modo, ao final da narração, Jesus e o cego são expulsos da sinagoga pelos fariseus: um por ter violado a lei e o outro porque, apesar da cura, é identificado como pecador de nascença.

O caminho do cego no campo da fé é feito por etapas, que começa com o conhecimento do nome de Jesus: “Aquele homem que se chama Jesus fez lodo e ungiu-me os olhos” (v. 11). Posteriormente, mediante as perguntas insistentes dos doutores da lei, passa ele a identificar Jesus como um profeta (v. 17) e, em seguida, um homem que está próximo de Deus (v. 31). Depois de ter sido afastado do Templo, excluído da sociedade, Jesus encontra novamente com o homem que era cego e novamente abre os seus olhos, desta vez para a fé, revelando a sua própria identidade: “Eu sou o Messias”, assim lhe diz. Nesta altura, aquele que era cego exclama: “Creio, Senhor!”, e prostra-se diante de Jesus (v. 38).

Em oposição à fé do cego curado está o endurecimento do coração dos fariseus que não querem aceitar o milagre, porque rejeitam acolher Jesus como o Messias. A multidão, ao contrário, detém-se a discutir sobre o que aconteceu e permanece distante e indiferente. Os próprios pais do cego sentem-se amedrontados pelo juízo dos outros.

A imagem da “luz” e das “trevas”, utilizada no texto, aparecia frequentemente na catequese primitiva. Para São Paulo, viver nas “trevas” é viver longe de Deus; ao passo que viver na “luz” é acolher o dom da salvação que Deus oferece e aceitar a vida nova que Ele propõe. Os cristãos são aqueles que escolheram viver na “luz” (cf. Ef 5,8-14).  Mais ainda: o cristão não é só chamado a viver na “luz”, mas também a dar testemunho da “luz”.

Também nós, por causa do pecado original nascemos “cegos”, mas na pia batismal fomos iluminados pela graça de Cristo. No rito do Batismo, a entrega da vela, acesa no grande círio pascal, símbolo de Cristo Ressuscitado, é um sinal que ajuda a compreender o que acontece quando recebemos este sacramento. Também nós fomos iluminados por Cristo no Batismo, para podermos ser como “filhos da luz” (Ef 5, 8), com humildade, paciência e misericórdia. Nestes dias em que estamos nos preparando para a Páscoa reavivemos em nós o dom recebido no Batismo.

Este encontro de Jesus com o cego de nascença, o fez adquirir tanto a visão física quanto a visão da fé.  Tendo sido procurado por Jesus, e dando-se conta de tratar-se do Messias, prostrou-se diante dele, fazendo sua confissão de fé: “Eu creio, Senhor!”.

Peçamos também nós ao Senhor que nos cure da cegueira pessoal e da cegueira espiritual, para que possamos abrir os nossos olhos à luz dos valores evangélicos: a vida e o amor, o trabalho e a justiça, a convivência e a solidariedade com os irmãos, para renovarmos assim nossa opção batismal.

Deixemos que o Senhor Jesus também nos cure, Ele que deseja dar a cada um de nós a luz de Deus!  Estejamos também conscientes da nossa cegueira, das nossas miopias, que nos impedem de tomar consciência do nosso próprio pecado (cf. Sl 18,14).  Possamos abrir o nosso coração à luz do Senhor. Confiemos à Virgem Maria o caminho quaresmal que estamos percorrendo neste dias, para que também nós, como o cego curado, com a graça de Cristo, possamos progredir rumo à Luz, que é o próprio Cristo, e renascer para uma vida nova. Assim seja.














sábado, março 18, 2023

A CAMPANHA DA FRATERNIDADE

 





A Quaresma é um tempo de penitência, oração e esmolas, para nos prepararmos para celebrar com alegria o grande mistério da Ressurreição do Senhor. A Igreja no Brasil, incentivando-nos a esses exercícios espirituais, convida-nos também, todos os anos, nesse período quaresmal, a um gesto concreto na área caritativa e social, através da Campanha da Fraternidade.

A Campanha da Fraternidade 2023 tem como tema “Fraternidade e fome”, e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16), que é uma ordem de Jesus aos seus discípulos.

O Papa Francisco, em sua mensagem, explica o objetivo da Campanha deste ano: “Todos os anos, no tempo da Quaresma, somos chamados por Deus a trilhar um caminho de verdadeira e sincera conversão, redirecionando toda a nossa vida para Ele, que “amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Ao preparar-nos para a celebração dessa entrega amorosa na Páscoa, encontramos na oração, na esmola e no jejum, vividos de modo mais intenso durante este tempo, práticas penitenciais que nos ajudam a colaborar com a ação do Espírito Santo, autor da nossa santificação”.

“Com o intuito de animar o povo fiel nesse itinerário ao encontro do Senhor, a Campanha da Fraternidade deste ano propõe que voltemos o nosso olhar para os nossos irmãos mais necessitados, afetados pelo flagelo da fome. Ainda hoje, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isto constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável”.

“A indicação dada por Jesus aos seus apóstolos ‘Dai-lhes vós mesmos de comer’ (Mt 14, 16) é dirigida hoje a todos nós, seus discípulos, para que partilhemos – do muito ou do pouco que temos – com os nossos irmãos que nem sequer tem com que saciar a própria fome. Sabemos que indo ao encontro das necessidades daqueles que passam fome, estaremos saciando o próprio Senhor Jesus, que se identifica com os mais pobres e famintos: ‘eu estava com fome, e me destes de comer... todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes’ (Mt 25, 35.40)”.

“É meu grande desejo que a reflexão sobre o tema da fome, proposta aos católicos brasileiros durante o tempo quaresmal que se aproxima, leve não somente a ações concretas – sem dúvida, necessárias – que venham de modo emergencial em auxílio dos irmãos mais necessitados, mas também gere em todos a consciência de que a partilha dos dons que o Senhor nos concede em sua bondade não pode restringir-se a um momento, a uma campanha, a algumas ações pontuais, mas deve ser uma atitude constante de todos nós, que nos compromete com Cristo presente em todo aquele que passa fome... Lembremo-nos de que aqueles que sofrem a miséria não são diferentes de nós. Têm a mesma carne e sangue que nós. Por isso, merecem que uma mão amiga os socorra e ajude, de modo que ninguém seja deixado para trás e, no nosso mundo, a fraternidade tenha direito de cidadania”.

 

Fonte: Dom Fernando Arêas Rifan

segunda-feira, março 13, 2023

III DOMINGO DA QUARESMA

 







Junto a esse “poço” movimentam-se os personagens principais: Jesus e a samaritana.  A mulher aqui apresentada sem o nome próprio, pode estar se referindo à Samaria, que procura desesperadamente a água que é capaz de matar a sua sede de vida plena.  A samaritana não tem nome, mas certamente vários nomes lhe foram impostos por ter tido cinco maridos e conviver com o sexto, que não é seu marido e, apesar disso, continuar com sede da água que só Jesus, esposo da humanidade, pode dar.  Ela se aproxima, em um dia ensolarado, para buscar água. Ela não tem nome porque é a própria humanidade que está procurando, no sufoco do calor, algo que sacie de uma vez por todas sua sede.

Quando Jesus diz: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva” (Jo 4,10).  Aquela mulher começa a interessar-se por essa água misteriosa. Mas, inicialmente, ela fica confusa. Parece disposta a remediar a situação de falência de felicidade que caracteriza a sua vida, mas ainda não sabe bem como.

É aqui que entra a novidade de Jesus. Ele senta-se “junto do poço”, como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à samaritana uma “água viva”, que matará definitivamente a sua sede de vida eterna (vv. 10-14). Jesus passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida plena encontrarão resposta para a sua sede.  Sentando junto ao poço, Jesus se dá a conhecer como a fonte da qual a humanidade inteira bebe. A partir de agora não se deve mais beber água da Lei ou das instituições, porque foram superadas pela fonte de água viva que é Jesus.

Jesus está com sede, mas quem acaba pedindo água é a mulher, pois ele tem a água capaz de saciar para sempre a sede de todos: ‘Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva.  Quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”(Jo Jo, 4,10.14).

A água que Jesus dá é o Espírito Santo, a força que vem de dentro e jorra para a vida eterna. A mulher e a humanidade tem sede dessa água e, por isso, pede: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la” (Jo 14,15).

O abandono do “cântaro” significa o romper com todos os esquemas de procura de felicidade falsa, para abraçar a verdadeira e única proposta de vida plena.

O vínculo com Jesus transforma completamente a vida daquela mulher, que corre imediatamente a comunicar a boa nova ao povo da aldeia vizinha: “Vinde ver um homem que me disse tudo quanto fiz. Não será ele o Messias?” (Jo 4,29). A revelação de Jesus, acolhida com fé, torna-se palavra proclamada ao próximo e testemunhada através das escolhas concretas de vida. Eis a missão dos crentes, que nasce e se desenvolve a partir do encontro pessoal com o Senhor.

No diálogo entre Jesus e a Samaritana vemos traçado o percurso espiritual ao qual somos chamados a redescobrir e a percorrer constantemente. Jesus quer nos levar, como fez com a Samaritana, a professar a fé em sua pessoa e depois, anunciar e testemunhar aos nossos irmãos a alegria desse encontro e as maravilhas que o seu amor realiza na nossa existência.

Chama a nossa atenção o caminho de conversão da samaritana. De pecadora a apóstola! Do fundo da miséria moral da sua vida, ela subiu em poucos momentos para as alturas da fé e do zelo em propagar o nome de Jesus. 

Abramos também nós, o coração à escuta da palavra de Deus para encontrar, como a samaritana, esse Jesus que nos revela seu amor e a sua identidade. Que a Virgem de Nazaré interceda sempre por nós, para que possamos obter este dom e sermos também anunciadores da boa nova que Cristo trouxe ao mundo. Assim seja.


Fonte: presbíteros.com

quinta-feira, março 09, 2023

QUARESMA, JEJUM E DESAPEGO





O jejum cordial que favorece que se abra em cada um de nós espaço largo e acolhedor para o outro não se faz sem trilhar caminho e sem a progressividade própria do caminhar. Se é verdade que a dilatação do coração não se opera sem a delicada e suave força da graça de Deus, verdade é também que não haverá conversão do olhar autocentrado em olhar descentrado, ampliado e hospitaleiro — centrado ainda, sim, mas no outro — sem treino e prática, tentando e tentando e tentando outra vez.

O desapego de si opera-se também pelo desapego das coisas, do que nos limita na liberdade para amar, nos bloqueia no alimentar das relações, nos prende em amarras estéreis e geradoras de permanente insatisfação, porque vinculadas a pseudonecessidades que potenciam o querer ter mais e mais (distraindo do desejo de ser mais). O jejum faz-se, pois, também da liberdade para não querer as coisas, os gestos, as atitudes, os hábitos que nos prendem a um puzzle de necessidades mais ou menos construídas, qual visibilização externa de uma teia que aprisiona o interior. Talvez mais radicalmente, a liberdade para, querendo tudo isso de que cremos necessitar (ou de que por vezes até tiramos frutos belos e bons), nos dispormos a querer não querer, a conscientemente prescindir disso com vista a podermos levantar os olhos, fixados em nós, e deixar que por eles entrem os outros.

Treina-se, dizia. Pratica-se. E treina-se e pratica-se passo a passo, com pequenos gestos concretos. Nesta Quaresma — que atravessamos para aprender a amar —, disponhamo-nos a algumas dessas concretizações da liberdade para querer não querer. Podem passar pelo jejum desta ou daquela refeição ou deste ou daquele alimento de que eu gosto particularmente, sim, sobretudo se daí tiro algum bem para outros; mas pode passar também pelo jejum desta ou daquela atividade individual que me enche de satisfação, mas impede de estar com; quem sabe, poderá passar pelo jejum deste ou daquele gadget que ilumina os meus olhos, mas não os deixa perscrutar em redor e ver quem está ou passa; passará seguramente pelo jejum das atitudes e palavras que me defendem ou engrandecem, mas à custa do outro. Cada um saberá entrever que amarras concretas lhe contraem o coração, impedindo-o de se expandir.

 

Fonte: Dehonianos de Portugal

segunda-feira, março 06, 2023

II DOMINGO DA QUARESMA







Um dia, meus caros em Cristo, passaremos do roxo das lágrimas desta vida, para o branco da Glória eterna dos que, revestidos da Glória do Cordeiro, haverão de segui-Lo para sempre! De Quaresma em Quaresma e de Páscoa em Páscoa, passaremos da Quaresma deste mundo para a Páscoa da Glória eterna!

Mas, detenhamo-nos um pouco no Tabor do Evangelho hodierno. Ele é prenúncio, uma misteriosa antecipação da Ressurreição.

Com Sua bendita Transfiguração, Jesus nosso Senhor deseja preparar os Seus para as dores da Paixão – do mesmo modo que a Igreja nos deseja alentar e motivar para as renúncias e observâncias quaresmais. Por isso mesmo, Pedro, Tiago e João, os três que estão no Tabor, são os mesmos que estarão no Jardim das Oliveiras. Por isso também o Evangelho de hoje termina com uma alusão à Ressurreição de Jesus dentre os mortos e, o relato da transfiguração em Lucas afirma que “Jesus falava de Sua partida que iria consumar-se em Jerusalém”  (Lc 9,30).

Eis: Moisés e Elias, a Lei e os Profetas dão testemunho da Paixão do Senhor: tudo estava no misterioso desígnio de Deus! Após a Ressurreição, isto ficará claro: “’Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na sua glória?’ E, começando por Moisés e passando por todos os Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras, as passagens que se referiam a Ele”  (Lc 24,26-27). Eis que mistério: a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias) dão testemunho de Jesus e aparecem iluminados por Ele. Somente Nele, na luz da Sua Cruz e Ressurreição, o Antigo Testamento encontra sua plenitude e sua luz!

Sendo assim, levantemo-nos! Tomemos, generosos, nosso caminho quaresmal! Também nós somos chamados, como nosso Pai Abraão o foi, a sair: sair de nós mesmos, sair de nós velhos para nós renovados, transfigurados à imagem do Cristo Jesus! Tenhamos a coragem de atravessar o deserto interior, enfrentar o deserto do nosso coração, como Moisés e Elias, como o Povo de Israel, como o próprio Senhor Jesus, que por nós quis ser tentado no Seu período de deserto! Somente assim chegaremos renovados e purificados ao nosso destino. Este destino não é um lugar, mas uma situação, uma realidade: é o homem novo, transfigurado à imagem do Cristo que, após o tormento imenso da Cruz, foi glorificado pelo Espírito do Pai.

Eis o caminho quaresmal: do homem velho ao homem novo, do pecado à graça, do vício à virtude, da preguiça espiritual à generosidade, da morte à Vida, da tristeza à alegria, trazendo em nós, na nossa vida, o reflexo da Glória do próprio Cristo Jesus! Não é este o significado das palavras de São Paulo, na segunda leitura de hoje? “Sofre comigo pelo Evangelho. Deus nos salvou e nos chamou a uma vocação santa… em virtude da graça que nos foi dada em Jesus Cristo. Esta graça foi revelada agora, pela manifestação de nosso Salvador, Jesus Cristo. Ele não só destruiu a Morte, como também fez brilhar a Vida e a imortalidade”. Eis! Os sofrimentos e lutas desta vida não são pesados se compararmos com o objetivo tão alto que nos preparam (2Cor 4,17)!

 

Caríssimos, que as práticas quaresmais, vividas com generosa fidelidade, arrancando o pecado que nos torna opacos, possam revelar em nós o resplendor da Glória de Cristo a que somos chamados e que já está presente em nós desde o nosso Batismo!

Mais ainda: que a novidade de nossa vida transborde para o mundo, que tanto tem necessidade do testemunho dos cristãos. Nunca esqueçamos: este mundo mergulhado na violência (violência da injustiça, violência do desrespeito à dignidade humana, violência da destruição das famílias, violência da fome, violência dos atentados à paz, violência das drogas e das mentiras, violência da corrupção, violência da imoralidade, violência da destruição do reto sentido da sexualidade, violência dos meios de comunicação, violência de minorias organizadas e tirânicas que desejam impor sua visão e sua agenda nefasta, violência da negação de Deus)… Este mundo precisa de nosso testemunho e de nossa palavra, mesmo quando nos rejeita, quando despreza o nome de Cristo, quando deseja esquecer o seu Senhor e pisar os valores do Evangelho!

Deixemo-nos, portanto, transfigurar pelo Senhor e sejamos humilde e forte luz para o mundo! Como pede a oração inicial da Missa hodierna: Senhor, “que purificado o olhar da nossa fé, nos alegremos com a visão da Vossa Glória!”. Por Cristo, nosso único Senhor











sexta-feira, março 03, 2023

A GUERRA DA UCRÂNIA







O infeliz aniversário de um ano da guerra da Ucrânia, na semana passada, nos leva a considerações sobre a moralidade das guerras e a paz. O que diz o Catecismo (CIC)?

“O respeito e o crescimento da vida humana exigem a paz. A paz não é só ausência da guerra, nem se limita a assegurar o equilíbrio das forças adversas...Ela é ‘tranquilidade da ordem’ (Santo Agostinho, em A Cidade de Deus); é ‘obra da justiça’ (Is 32, 17) e efeito da caridade (Gaudium et Spes, 78) (CIC 2304).

“O quinto mandamento proíbe a destruição voluntária da vida humana. Por causa dos males e injustiças que toda a guerra traz consigo, a Igreja exorta instantemente a todos para que orem e atuem para que a Bondade divina nos livre da antiga escravidão da guerra (Gaudium et Spes, 81). Cada cidadão e cada governante deve trabalhar no sentido de evitar as guerras. No entanto, enquanto subsistir o perigo de guerra e não houver uma autoridade internacional competente, dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, uma vez esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa (Gaudium et Spes, 79)”.

“Devem ser ponderadas com rigor as estritas condições duma legítima defesa pela força das armas. A gravidade duma tal decisão submete-a a condições rigorosas de legitimidade moral. É necessário, ao mesmo tempo: – que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidade de nações seja duradouro, grave e certo; – que todos os outros meios de lhe pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes; – que estejam reunidas condições sérias de êxito;

– que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. O poder dos meios modernos de destruição tem um peso gravíssimo na apreciação desta condição. Estes são os elementos tradicionalmente apontados na doutrina da chamada ‘guerra justa’. A apreciação destas condições de legitimidade moral pertence ao juízo prudencial daqueles que têm o encargo do bem comum” (CIC 2307-2309).

“A Igreja e a razão humana declaram a validade permanente da lei moral durante os conflitos armados. ‘Uma vez lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se torna lícito entre as partes beligerantes’ (Gaudium et Spes, 79). Devem ser respeitados e tratados com humanidade os não-combatentes, os soldados feridos e os prisioneiros. As ações deliberadamente contrárias ao direito dos povos e aos seus princípios universais, bem como as ordens que comandam tais ações, são crimes. Uma obediência cega não basta para desculpar os que a elas se submetem. Assim, o extermínio dum povo, duma nação ou duma minoria étnica deve ser condenado como pecado mortal. É-se moralmente obrigado a resistir às ordens para praticar um genocídio. ‘Toda a ação bélica, que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras ou vastas regiões com os seus habitantes, é um crime contra

Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza, sem hesitação’ (Gaudium et Spes, 80) (cf. CIC 2312-2314).

Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz!

 

Fonte: Dom Fernando Arêas Rifan