sexta-feira, outubro 23, 2015

FAMÍLIA: UM BEM INESTIMÁVEL



Em Roma, prosseguem os trabalhos da 14ª. assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos, um organismo criado pelo Papa Paulo VI em 1965 para consultar os representantes do episcopado católico de todo o mundo sobre diversas questões. O Papa Francisco quis que, desta vez, a assembleia se dedicasse ao tema da vocação e missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo. Afinal, qual é o papel da família, no entender da Igreja?
A cultura contemporânea questiona e, de alguma forma, também abala algumas das convicções mais elementares sobre a pessoa humana, o casamento e a família. Já não é mais clara para todos a razão de ser da família; muitos deixam de casar e de constituir família, por acharem que ela traz mais problemas que soluções. Buscam-se até vias alternativas ao Matrimônio, equiparando ao casamento entre um homem e uma mulher também a união de duas pessoas do mesmo sexo. A indissolubilidade e a unidade do vínculo matrimonial, como também a fidelidade estrita dos esposos, parecem coisas ultrapassadas e até a procriação tornou-se um elemento secundário. A legislação de muitos países assemelhou o Matrimônio aos pactos transitórios, que se podem dissolver com a mesma facilidade com que se desfazem certos contratos de interesse comercial.
A questão, porém, é mais profunda; passamos por uma séria crise cultural, que afeta diretamente a compreensão sobre o ser humano, o casamento, as realidades familiares e as relações humanas básicas; conceitos antropológicos consolidados tornaram-se líquidos e se estão vaporizando cada vez mais. A própria sexualidade “binária”, entendida normalmente como masculina e feminina, é vista por alguns como uma imposição insuportável da natureza à autonomia e à liberdade de escolha do indivíduo.

A pergunta é, se isso tudo veio para ficar, ou não passa de uma onda momentânea, que poderá ser superada com mais um pouco de tempo e paciência? As ousadas “inovações” de certo pensamento antropológico, com suas consequências, não deixam de revelar suas fragilidades. A afirmação extrema da autonomia e da liberdade individual transforma o ser humano numa mônada, sem abertura para relações humanas enriquecedoras, como o casamento, a família e as iniciativas altruístas. Empenhar-se num laço estável com alguém parece pouco atraente pois isso implicaria na limitação da própria liberdade; ter filhos, assumir responsabilidades sobre outros, inclusive com renúncias e sacrifícios pessoais, contradiria o ideal de felicidade centrado na satisfação do próprio “eu”, acima de tudo...
No entanto, será que semelhante atitude diante da vida pode levar à felicidade e à realização madura e frutuosa da existência? O resultado final não será a solidão, o vazio e uma amarga experiência de fragilidade? Quem deixou de partilhar com generosidade a própria vida poderá confiar na generosidade de outros?
No Sínodo, a Igreja Católica faz a sua reflexão sobre o casamento e a família e também deseja dizer uma palavra sobre as situações novas e complexas enfrentadas por essa “célula básica da sociedade”. Onde encontrar base sólida para dar orientação e sentido ao casamento e à família? O certo é que essas realidades, apesar dos seus diversos revestimentos culturais entre os povos e ao longo da história, não surgiram porque nós as inventamos a partir do nosso arbítrio: o próprio ser humano, sua sexualidade, o casamento, a geração de filhos, a paternidade, a maternidade e a família existem independentemente de nossas teorias e decisões sobre elas e têm um sentido próprio, que o homem precisa descobrir e acolher, sem a pretensão de ser, ele próprio, o autor de si mesmo.
Casamento e a família, antes de serem realidades reguladas pelo Estado e pela própria Igreja, já existem a partir de uma base natural, que revela a intenção boa do Criador: “Deus viu que era muito bom tudo o que havia feito” (cf Gn 1,31). Mediante o olhar da fé, iluminado pela Palavra de Deus, podemos desvendar o valor primordial da união matrimonial e da família e chegar também ao seu arquétipo – o próprio amor de Deus, e entrever seu horizonte mais luminoso - a beatitude final em Deus. 
A vocação da família está inscrita na própria natureza do homem e da mulher, que se atraem para a união. Esse chamado ao casamento e à família está expresso de maneira figurativa no poema bíblico da criação do casal humano. Deus compadeceu-se da solidão de Adão, que vivia no jardim do Éden, rodeado de plantas, animais e seres de todo tipo, mas, entre esses, “não encontrou nenhum que lhe correspondesse”. Então Deus disse: “não é bom que o homem esteja só”. E criou a mulher, apresentou-a ao homem, que se alegrou e a reconheceu: “é carne da minha carne e osso dos meus ossos!”. Adão, que não se identificou com nenhum dos outros seres, viu em Eva alguém semelhante a si; os dois se correspondiam (cf Gn 2,18-24).
Homem e mulher, portanto, foram feitos um para o outro e, na complementariedade recíproca, está a sua vocação, da qual também decorre a missão de ser um para o outro, interessar-se pelo bem recíproco, tornar fecundo seu amor e cuidar do fruto desse amor. A família torna-se também a base das relações humanas na grande sociedade e para a própria humanidade, que também é uma grande família.
Poderíamos imaginar uma sociedade sem base na família? O papel da família é profundamente humanizador; apesar de todos os limites e problemas que possa enfrentar, ela permanece um bem inestimável para a pessoa e para a comunidade humana. Se a sociedade descuidar da família, colherá muitos problemas. E aqui está um dos objetivos do Sínodo: lembrar que é preciso zelar pela saúde da célula básica do grande corpo social. Cuidar bem da família é cuidar do bem de toda a sociedade. 
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo