A BONDADE E A OUSADIA ERAM AS TÔNICAS DE SUA ATIVIDADE PASTORAL. SUA VIDA COTIDIANA, UMA CONJUGAÇÃO DE SACRIFÍCIOS, ORAÇÃO E ATIVIDADE
MISSIONÁRIA. DE FORMAÇÃO MILITAR, A PROVIDÊNCIA CHAMARA-O A SER MONGE E, MAIS
TARDE, BISPO.
"SÃO QUATRO MIL IGREJAS DEDICADAS A ELE, E O SEU
NOME DADO A MILHARES DE LOCALIDADES, POVOADOS E VILAS; COMO EM TODA A EUROPA,
NAS AMÉRICAS. ENFIM, EM TODOS OS PAÍSES DO MUNDO"
Eram os primeiros dias de novembro de 397. No povoado
francês de Candes, um Bispo ancião jazia gravemente enfermo num mosteiro.
Multidões vindas de Poitiers e de Tours montavam guarda à porta daquele santo
lugar. No dia 8, logo após seu falecimento, o silêncio entrecortado por preces
cedeu lugar a uma barulhenta discussão:
- Martinho foi nosso monge e nosso abade. Por isso
pedimos que nos entreguem o corpo! - diziam os habitantes de Poitiers.
- Deus o tirou de vós e o deu a nós - replicavam os de
Tours. Segundo a tradição, seu túmulo deve ficar na cidade onde foi consagrado!
O que fizera em vida esse Prelado para provocar tal disputa?
ATRAÇÃO PELA VIDA DE ANACORETA
Martinho nasceu na Panônia, região situada entre a
Áustria e Hungria, em 316 ou 317. Sua família pertencia à aristocracia
galo-romana e era pagã. O nome, que significa "pequeno Marte",
foi-lhe dado pelo pai em homenagem ao deus da guerra. Oficial do exército
romano, queria proporcionar ao filho uma brilhante carreira militar.
A infância de Martinho transcorreu em Ticinum, a atual
Pavia. Não ficaram registrados, porém, os fatos desse período de sua vida, à
exceção de um: aos dez anos de idade, desapareceu de casa, deixando aflitos
seus progenitores; dois dias depois, reapareceu bem alimentado e sem nenhuma
marca de maus-tratos. O que acontecera? Às insistentes perguntas dos pais,
parentes e vizinhos, ele oferecia como resposta apenas um silêncio envolvido em
muita paz.
Tempos depois se conheceria o ocorrido: o menino fora
visitar os cristãos, pois almejava conhecê-los e aprender algo sobre o Deus dos
mártires, dos quais muito ouvira falar. Entretanto, sentia ainda maior atração
pelos homens que, no Oriente, deixavam tudo quanto o mundo podia lhes oferecer
e se retiravam para regiões desérticas, a fim de levar uma vida de ascese e
oração.
A cada dia aumentava o seu desejo de unir-se a esses
anacoretas, quer fosse no Egito, na Síria ou onde Deus quisesse o conduzir.
Restava-lhe, porém, um longo caminho a percorrer até atingir esse ansiado
objetivo.
"MARTINHO COBRIU-ME COM ESTE MANTO"
Aos quinze anos, viu-se obrigado a entrar no exército,
devido a um edito imperial. Divergem os historiadores sobre a duração do seu
serviço militar. Alguns julgam ter permanecido no exército o tempo então
exigido: 25 anos. Como soldado da Guarda Imperial, passou em Amiens a maior
parte de sua vida castrense.
Aconteceu ali o célebre episódio que ficou
imortalizado nas páginas hagiográficas de Martinho e em inúmeras obras de arte.
Durante o rigoroso inverno de 335, o santo passava por uma das portas da cidade
quando avistou um mendigo tremendo de frio, o qual estendeu-lhe a mão, pedindo
auxílio. Não tinha dinheiro para dar-lhe, mas, sem titubear, sacou a espada,
dividiu ao meio sua capa de frio e entregou uma parte ao infeliz. Nessa noite,
o jovem soldado viu em sonhos Cristo Jesus vestido com a metade do agasalho por
ele doado. E ouviu-O dizer com voz forte a uma multidão de anjos:
"Martinho, que é apenas catecúmeno, cobriu-Me com este manto". Embora ainda não batizado, sua alma estava já embebida da caridade cristã.
Na vida militar, Martinho comportava-se de modo
diferente dos seus companheiros de caserna. Assim, por exemplo, todo membro da
Guarda Imperial dispunha de um cavalo e um escravo, ser desprezível e sem
direitos, segundo os critérios da época. Entretanto, o jovem soldado tratava-o
como um irmão, a ponto de lavar-lhe ele mesmo os pés e servi-lo durante as
refeições.
RETORNO À PANÔNIA E CONTROVÉRSIA ARIANA
Quando teria sido lavado Martinho nas águas batismais?
Não se sabe ao certo. Provavelmente, ainda em Amiens, pois quando deixou o
exército, no ano 356, dirigiu-se para Tréveris, onde havia uma ativa comunidade
católica.
Atraído pela fama de santidade do Bispo Hilário,
viajou para Poitiers a fim de tomar o venerável prelado como mestre e guia.
Este o recebeu de braços abertos, e quis ordená-lo diácono. Martinho, porém,
sentindo-se indigno desse nobre encargo, aceitou somente a ordem menor do
exorcistado.
Aprofundou-se no conhecimento da doutrina cristã e,
prestes a renunciar por completo ao mundo, julgou ser um dever visitar os seus
pais, que haviam retornado à Panônia, pois ansiava por vê-los professar a Fé
cristã. Seu mestre animou--o nesse intento, e ao mesmo tempo o fez prometer que
voltaria.
Empreendeu a viagem, enfrentando muitas dificuldades e
escapando por pouco de ser morto por salteadores ao atravessar os Alpes.
Afinal, encontrou-se com seus progenitores, falou-lhes de Cristo, da vida
eterna e incitou-os a receberem o Batismo. O coração materno sentiu- se logo
inclinado a crer naquela doutrina meio misteriosa, mas sublime, exposta pelo
filho. O pai, entretanto, se manteve obstinado nos costumes pagãos.
Importante é lembrar que nessa época travava-se
ferrenha luta contra os hereges arianos, os quais negavam a divindade de Nosso
Senhor Jesus Cristo e, consequentemente, seu sacrifício redentor. Na Panônia, o
número de partidários de Ário era considerável, inclusive entre o clero. Por
defender a boa doutrina, Martinho foi açoitado e teve de voltar, fugindo, para
Poitiers.
A caminho dessa cidade, tomou conhecimento de que Santo Hilário havia sido exilado na Frísia pelo imperador Constâncio, por ter-se negado a assinar o decreto exigindo a condenação de Santo Atanásio, o mais implacável adversário da heresia ariana.
A caminho dessa cidade, tomou conhecimento de que Santo Hilário havia sido exilado na Frísia pelo imperador Constâncio, por ter-se negado a assinar o decreto exigindo a condenação de Santo Atanásio, o mais implacável adversário da heresia ariana.
PRIMEIRO MOSTEIRO EM TERRAS FRANCESAS
Martinho sofria pela ausência do venerável Hilário e a
incerteza de reencontrá-lo. Entrementes, resolveu estabelecer-se numa pequena
ilha italiana perto da cidade costeira de Albenga, a qual lhe pareceu propícia
para sua primeira experiência de vida eremítica.
Três anos depois, o Santo Bispo voltou a Poitiers, e
para lá viajou Martinho também. Sob os auspícios de Hilário, instalou-se em
Ligugé, às margens do rio Clain, a fim de levar uma vida eremítica, dedicada
apenas à oração e contemplação.
Entretanto, durou pouco o almejado isolamento:
atraídos por seu exemplo, numerosos cristãos reuniram-se em torno dele,
formando a pequena comunidade que deu origem ao primeiro mosteiro instituído em
terras francesas. Nessa época a fama de santidade de Martinho já era grande, e
Santo Hilário conseguiu, afinal, persuadi-lo a aceitar as ordens maiores.
Fortuitamente, Martinho ausentava-se de Ligugé para
visitar o santo Bispo a quem considerava seu verdadeiro pai. Pois era nesse
convívio, pervadido de veneração pelo mestre, que o discípulo preparava-se, sem
saber, para a realização dos desígnios da Providência.
BISPO DE TOURS, CONTRA SUA VONTADE
Em 371, quatro anos após a morte de Santo Hilário,
faleceu Lidoro, Bispo de Tours. Martinho foi convidado a assumir essa sé
episcopal, mas recusou de imediato. Não via como conciliar a vida eremítica com
os encargos de um pastor da Igreja.
Mas se, por um lado, estava ele resolvido a rejeitar o
cargo, mais decididos estavam os cristãos de Tours a fazê-lo aceitar. Certo
dia, um de seus habitantes foi a Ligugé e pediu-lhe, de joelhos, para ir com
ele até a cidade e curar sua esposa enferma.
Sempre disposto a socorrer o próximo, o santo eremita
sentiu-se na obrigação de acompanhar aquele homem. Durante o percurso - três
dias de caminhada - foi se juntando a eles uma multidão cada vez mais numerosa.
Já nas proximidades de Tours, todas as pessoas que o rodeavam manifestavam o
mesmo desejo: "Martinho é o mais digno do Episcopado. Feliz a Igreja que
tiver um Bispo como ele!". Somente, então, deu-se conta de ter caído numa
armadilha...
No exercício do múnus episcopal, mostrou infatigável
zelo pelo rebanho confiado pelo Senhor aos seus cuidados. Não esperava o povo
vir ao seu encontro: ia aos mais recônditos lugares, e por vezes até
extrapolava os limites de sua diocese, no empenho de propagar a verdade de
Cristo.
Recebeu nessa época a visita de um advogado
recém-convertido ao Cristianismo, Sulpício Severo, o qual, impelido pela sua
fama de santidade, quis vê-lo pessoalmente. Não foi decepcionado em suas
expectativas. Conta ele a confusão que sentiu quando o santo Bispo, antes de
uma refeição lavou-lhe as mãos, e tinha já, na véspera, lhe lavado os pés:
"Não pude opor-me nem contradizê-lo. Era tal sua autoridade que a recusa
teria sido um sacrilégio". Sulpício decidiu ser seu discípulo e escrever sua
biografia. Passou a acompanhá-lo por toda parte, analisando com amor e
admiração todos os fatos que presenciava, os quais transmitiu à posteridade num
livro muito popular na Idade Média, intitulado Vida de São Martinho.
REGRA VIVA PARA OS MONGES DE MARMOUTIER
Contudo, as obrigações episcopais não o afastaram de
seu ideal: sempre desejoso de contemplação e oração, mandou construir, não
muito longe da cidade, uma cela onde se recolhia de tempos em tempos. Tal como
em Ligugé, juntaram-se a ele numerosos discípulos, e acabou formando-se naquele
local outra comunidade cenobítica: o famoso mosteiro de Marmoutier.
Ali, São Martinho dava grande ênfase à caridade
fraterna. O convívio entre homens consagrados a Deus por amor a um mesmo ideal
precisava ser isento de rixas e rivalidades. A vida comunitária devia formar
varões dispostos a todas as intrepidezes a serviço da Igreja. Aquele mosteiro
não tinha constituições escritas, mas sim uma regra viva: o exemplo do
fundador.
Como nos outros cenóbios surgidos sob a inspiração do
santo Bispo, em Marmoutier dava-se prioridade à oração. O trabalho, naquela
época, ainda era considerado como uma ocupação inferior, e por isso
dedicavam-se a ele apenas os monges mais jovens, os quais dividiam o tempo de
oração com o ofício de copista. Ninguém podia possuir, comprar ou vender nada.
A túnica, feita de pele de camelo, e a abstinência do vinho nas refeições
assinalavam o rompimento definitivo com o mundo.
Marmoutier tornou-se um centro de formação para
clérigos e monges. Sua fama espalhou-se tanto que de todas as partes chegavam
pedidos ao fundador para que lhes enviasse seus filhos espirituais.
SEU DESCANSO ERA FAZER BEM ÀS ALMAS
Na "idade de ouro" dos Padres da Igreja, São
Martinho não se destacou como homem de grande cultura nem pela discussão de
temas doutrinários candentes. Para isso Deus suscitara outros santos varões.
Dele quis a Providência árduos esforços de evangelização.
Narra a historiadora Régine Pernoud: "Com efeito,
é visto constantemente pelos caminhos que, atravessando campos e bosques,
conduzem a algum povoado. Percorre-os quando vai destruir templos pagãos ou
dissuadir os camponeses de adorar as árvores e as fontes. [...] Pregava
oportuna e importunamente, não só às multidões mas também a grupos reduzidos".
Nessas missões apostólicas junto às populações rurais, extirpava as crenças e superstições pagãs, e lhes incutia a doutrina cristã. Não se contentava em convertê-los, mas ocupava-se em dar aos neófitos uma adequada formação cristã. Onde encontrava ânimos acirrados, seu trato bondoso suavizava os corações.
Incansável na defesa das verdades da Fé, São Martinho entregou-se totalmente a Deus, mas também às almas confiadas a seus cuidados. A bondade e a ousadia são notas tônicas de sua atividade pastoral. Sua vida cotidiana era uma conjugação de sacrifícios, labor apostólico e oração. Seu descanso era fazer bem às almas.
SEU ROSTO RESPLANDECIA COMO O DE UM ANJO
Tinha já cerca de 80 anos de idade e sentia-se
esgotado quando foi chamado a restabelecer a paz entre os sacerdotes do povoado
de Candes, os quais se encontravam numa desoladora situação de discórdias.
Partiu apressadamente para exortá-los à caridade fraterna, e obteve pleno êxito
nessa última missão.
Sulpício Severo não acompanhou o seu mestre nessa
viagem, mas certa manhã sonhou com ele, vestido de branco, sorridente e
esplendoroso. "Seu rosto era como uma chama; seus olhos, brilhantes como
estrelas, e sua cabeleira era luminosa". E viu como, transportado por uma
nuvem veloz, era ele acolhido nos Céus entreabertos. Sulpício despertou
sobressaltado, e pouco depois entrou no quarto um criado que lhe disse:
"Acabam de chegar dois monges de Tours, trazendo a notícia da morte de Dom
Martinho".
O que se passara de fato? Depois de restaurar a
concórdia entre os sacerdotes de Candes, o venerável ancião sentiu-se
abandonado pelas próprias forças e comunicou seu estado aos religiosos do
mosteiro onde se hospedara. Em meio às lágrimas, estes rogavam insistentemente
a Deus a permanência na Terra de seu extremoso pai e pediam-lhe que fizesse o
mesmo.
São Martinho, porém, não temia morrer, nem recusava o combate da vida. Deitado no chão sobre um leito de cinzas, abandonava-se nas mãos de Deus, pronto para fazer sua divina vontade. Seu rosto resplandecia como o de um anjo.
O falecimento do venerado Bispo provocou grande
comoção. E depois da célebre discussão entre os habitantes de Poitiers e os de
Tours a respeito de qual cidade tinha direito aos santos despojos, os
habitantes de Tours conseguiram "roubar" à noite o inestimável
tesouro. A população inteira saiu para recebê-lo.
"Todo aquele que por minha causa deixar irmãos,
irmãs, pai, mãe [...] receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna" (Mt
19, 29). São Martinho pôde experimentar o cumprimento dessa promessa de Cristo:
ainda em vida, viu em torno de si uma multidão de irmãs e irmãos na Fé, e uma
abundância de filhos espirituais. Sua evangelização vincou raízes robustas e
profundas que o tornam um dos mais venerados santos da Igreja.
"O
gesto caritativo de São Martinho se insere na lógica que levou a Jesus a
multiplicar os pães para as multidões famintas, mas sobretudo a dar-se a si
mesmo como alimento para a humanidade na Eucaristia. (...) Com esta lógica de
compartilhar se expressa de modo autêntico o amor ao próximo". Papa Bento XVI - Ângelus, de 11 de novembro de 2007.
MacCulloch,
Daimaid (2009). A History of Christianity: The First Three Thousand Years.
Penguin Group. ISBN 1-101-18945-2.
Jump
up Sulpicius Severus. Life of St. Martin, College of St. Benedict,
St. John's University; St. Joseph, Minnesota
PERNOUD,
Régine. San Martín de Tours. Madrid: Encuentro,
Cf. LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica - Edad Antigua. Madrid: BAC, 1996, p. 604.
SULPICIUS SEVERUS. Lettere e dialoghi. Testi patristici. Roma: Città Nuova, 2007, p.131.
Cf. LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica - Edad Antigua. Madrid: BAC, 1996, p. 604.
SULPICIUS SEVERUS. Lettere e dialoghi. Testi patristici. Roma: Città Nuova, 2007, p.131.
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