Aquele
homem “com um espírito impuro” que interpela Jesus na sinagoga de Cafarnaum
representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, que são reféns do
egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do medo, da exploração, da exclusão,
da injustiça, do ódio, da violência, do pecado; representa essa humanidade que
percorre um caminho à margem de Deus e das suas propostas, que aposta em
valores efêmeros e escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou
efêmeras. Para todos nós que, de uma forma ou de outra, vivemos mergulhados
nesta realidade desumanizadora, o relato de Marcos deixa uma Boa Notícia: Deus
não Se conforma com o fato de os homens trilharem caminhos de morte, e virá
sempre ter connosco para nos oferecer a liberdade e a salvação.
Para
Marcos, a proposta de Deus chega tornar-se realidade viva e atuante em Jesus.
Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com os seus
gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um caminho novo de liberdade e
de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao orgulho e à
autossuficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus e aos
irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à injustiça, ao
ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele contrapõe a
liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida.
Os
discípulos de Jesus são as testemunhas, aqui e agora, da sua proposta
libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta
de Jesus contra todos os “demônios” que introduzem no mundo dinâmicas criadoras
de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho
que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo
mais humano, mais livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os
seguidores de Jesus não podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu,
enquanto o mundo é construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de
egoísmo e de morte; mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente,
contra tudo aquilo que desumaniza os filhos e filhas de Deus. Essa é também a
minha luta?
O
texto refere o incômodo do “homem com um espírito impuro”, diante da presença
libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas e
intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de
injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do
Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes,
vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias,
ficando à margem da história por medo ou comodismo; mas devem assumir
corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na transformação das
realidades políticas, económicas, sociais, laborais, familiares.
Aquele
homem dominado “por um espírito impuro” não deve ter entrado pela primeira vez
na sinagoga de Cafarnaum naquele sábado. Provavelmente participava
habitualmente na liturgia sinagogal, escutava a Palavra de Deus que era lida e
as explicações dos escribas. Mas só nesse dia se sentiu questionado e
incomodado pela Palavra que escutou. Porquê? Porque Jesus proclamou e explicou
a Palavra de uma forma nova, “com autoridade”, com aquela autoridade que lhe
vinha da sua experiência de Deus? É possível. E a Palavra de Deus que ecoa
todos os dias nas nossas celebrações comunitárias? Transmite uma experiência de
Deus e faz-nos sentir a presença de Deus? Provoca alguma transformação no
coração dos que a escutam? Interroga-nos, desafia-nos, provoca-nos, inquieta-nos
ou deixa-nos impávidos, indiferentes e sempre adormecidos?
A
luta contra os “demônios” que desferiam o mundo e escravizam os homens nossos
irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos, divisões, sofrimento;
mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e uma luta que vale a
pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice de Deus na construção
de um mundo de homens livres.