O
jejum cordial que favorece que se abra em cada um de nós espaço largo e
acolhedor para o outro não se faz sem trilhar caminho e sem a progressividade
própria do caminhar. Se é verdade que a dilatação do coração não se opera sem a
delicada e suave força da graça de Deus, verdade é também que não haverá
conversão do olhar autocentrado em olhar descentrado, ampliado e hospitaleiro —
centrado ainda, sim, mas no outro — sem treino e prática, tentando e tentando e
tentando outra vez.
O
desapego de si opera-se também pelo desapego das coisas, do que nos limita na
liberdade para amar, nos bloqueia no alimentar das relações, nos prende em
amarras estéreis e geradoras de permanente insatisfação, porque vinculadas a
pseudonecessidades que potenciam o querer ter mais e mais (distraindo do desejo
de ser mais). O jejum faz-se, pois, também da liberdade para não querer as
coisas, os gestos, as atitudes, os hábitos que nos prendem a um puzzle de
necessidades mais ou menos construídas, qual visibilização externa de uma teia
que aprisiona o interior. Talvez mais radicalmente, a liberdade para, querendo
tudo isso de que cremos necessitar (ou de que por vezes até tiramos frutos
belos e bons), nos dispormos a querer não querer, a conscientemente prescindir
disso com vista a podermos levantar os olhos, fixados em nós, e deixar que por
eles entrem os outros.
Treina-se,
dizia. Pratica-se. E treina-se e pratica-se passo a passo, com pequenos gestos
concretos. Nesta Quaresma — que atravessamos para aprender a amar —,
disponhamo-nos a algumas dessas concretizações da liberdade para querer não
querer. Podem passar pelo jejum desta ou daquela refeição ou deste ou daquele
alimento de que eu gosto particularmente, sim, sobretudo se daí tiro algum bem
para outros; mas pode passar também pelo jejum desta ou daquela atividade
individual que me enche de satisfação, mas impede de estar com; quem sabe,
poderá passar pelo jejum deste ou daquele gadget que ilumina os meus olhos, mas
não os deixa perscrutar em redor e ver quem está ou passa; passará seguramente
pelo jejum das atitudes e palavras que me defendem ou engrandecem, mas à custa
do outro. Cada um saberá entrever que amarras concretas lhe contraem o coração,
impedindo-o de se expandir.
Fonte: Dehonianos de Portugal