Como não poderia deixar de ser, a Quaresma deste ano é iluminada com a luz da misericórdia divina. Uma luz que ilumina a vida humana, a vida de cada um de nós, para que sejamos misericordiosos como o Pai é misericordioso (Lc 6.36). O motivo de uma Quaresma iluminada pela misericórdia situa-se no contexto do Ano Santo da Misericórdia, iniciado no dia 8 de dezembro do ano passado. Por isso, se a natureza da Quaresma tem um caráter, em si, misericordioso, o tem com mais intensidade neste tempo tão rico devido ao Ano Santo da Misericórdia.
Um dado, que podemos dizer que é típico da Quaresma, é considerar a santidade divina e a situação pecadora do homem e da mulher. Eis o motivo pelo qual a primeira Palavra dirigida aos celebrantes da quarta-feira de cinzas é um apelo para que voltem a Deus de todo coração, com todos os sentimentos (lágrimas e gemidos) e com atitudes que favoreçam a conversão (jejuns e rasgar o coração) (1ª leitura). Esta primeira Palavra dirigida aos celebrantes ajudam-nos a entender que o pecador não se torna pecador pelo acúmulo de faltas, mas por se distanciar dos caminhos de Deus. Aliás, ele comete faltas porque se distancia dos caminhos de Deus e, quando percebe o que fez, torna-se perdido e passa, no exemplo do filho pródigo, a alimentar-se com comida destinada aos porcos, isto é, com a imundície do mundo e da vida (Lc 15,11-32). Existe alguma garantia de que Deus acolherá o pecador? Sim, profetiza Joel, a sua grande misericórdia (1ª leitura). Isto como que autoriza o pecador a se aproximar de Deus, pois com certeza ele será acolhido. O acolhimento é uma característica de quem é misericordioso.
A profecia de Joel (1ª leitura), de fácil compreensão, não se limita ao pecador individual, mas a todo povo. Nisto podemos entrever que não se trata somente da pessoa ter o coração misericordioso, mas que a misericórdia esteja presente no meio de todo o povo, dos idosos aos lactantes, presente em todas as classes sociais, em todas as famílias. É um contexto, como pretende este Ano Santo, estabelecer uma nova cultura de relacionamentos sociais a partir da misericórdia, e com relacionamentos misericordiosos, da mesma forma que Deus se relaciona conosco, quando erramos e pecamos. A prática de relacionamentos misericordiosos trará alegria ao coração,
generosidade em nossos relacionamentos e colocará o louvor em nossos lábios, para cantar a bondade divina a nosso respeito (salmo responsorial).
Neste contexto de relacionamento misericordioso, a Palavra de Paulo abre a 2ª leitura lembrando nossa condição de “embaixadores de Cristo”. O papel de um embaixador é de representar, no sentido de “tornar presente” aquilo que é próprio de um país e dos interesses do país. Esta é uma atividade do cristão: defender os interesses de Deus em relação à humanidade, propor os mesmos caminhos e o mesmo modo com o qual Deus se relaciona conosco. Eis um projeto grande que se abre nesta Quaresma. No contexto do Ano Santo da Misericórdia — como já proposto em vários outros momentos de reflexão sobre o sentido da misericórdia — esta não se trata, apenas, de sentimentos, tais como ter dó ou pena de alguém, mas de estabelecer um relacionamento diferenciado entre nós, a partir do jeito divino de se relacionar. O dado concreto da tarefa de embaixador de Cristo, o projeto de como ser embaixador de Cristo (2ª leitura), no conceito da misericórdia, encontra-se no Evangelho. E o que ele diz, no início da Quaresma?
Jesus traça o caminho do misericordioso a partir da humildade e não do exibicionismo. Misericordioso é alguém que faz o bem porque é bondoso e não necessita exibir sua bondade (Evangelho). A característica do misericordioso está no coração, na alegria interior de sentir-se bem por fazer o bem e não usar a miséria do outro como palco para aparecer e ser admirado. O misericordioso não se preocupa com recompensas, porque vive sua vida na completa gratuidade, na generosidade de quem é bom e bondoso, como Deus. Sempre no contexto do Evangelho, o misericordioso se abstém de todo tipo de publicidade, como seu modo de rezar, de jejuar, de praticar a religião. O misericordioso, em conclusão, não se caracteriza pelo exterior, mas por ter um coração parecido com o Coração de Jesus.