Passados os
fatos da “canonização”, é de se perguntar, se isso tudo trouxe algo de novo
para a vida da Igreja? Anchieta tornou-se mais importante depois que a Igreja,
pela decisão do papa Francisco, o proclamou “santo”?
É bom lembrar as intenções da Igreja, quando ela canoniza alguém. Antes
de tudo, ela reconhece a obra da graça de Deus, que frutificou de maneira
extraordinária nessa pessoa; muitas vezes, o santo teve algum dom especial do
Espírito Santo e o desenvolveu de maneira fiel, colocando-o a serviço da glória
de Deus e do bem do próximo.
Mas, sobretudo,
a Igreja reconhece no santo um discípulo fiel de Jesus Cristo, um cristão
exemplar, cuja vida foi fiel ao Evangelho e pode ser inspiradora para outros.
Por isso, os santos são propostos como exemplos de vida, para que sirvam de
estímulo e encorajamento para os outros. Diante dos santos, vem a pergunta: se
eles puderam, por que não podemos também nós? Se eles
permaneceram fieis à fé, perseveraram até o fim, mesmo através de provações e
até no martírio, por que não podemos também nós?
Por isso, os santos também são propostos como nossos intercessores junto
de Deus; na Igreja, “comunhão dos santos”, eles bem se interessam por aqueles
que ainda peregrinam nesta vida e lutam para chegar a Deus...
O que dizer de
São José de Anchieta? Seria necessário, por certo, promover um conhecimento
maior dessa figura extraordinária de missionário, que está na origem da
história da Igreja no Brasil. Interpretações distorcidas
sobre ele e sua ação, surgidas num clima iluminista de perseguição
anti-jesuítica nos tempos do Marquês de Pombal, que culminou com a expulsão dos
jesuítas do Brasil; tais versões viciadas passaram aos relatos de história e
são ensinadas, sem serem questionadas.
A história colonial e a saga dos bandeirantes, por vezes, apresentada
com orgulho épico nos manuais de história pátria, não foi nada amistosa com o
trabalho missionário dos jesuítas e também contribuiu para difundir versões
comprometidas da história. A imagem de Anchieta não escapou ilesa, a ponto de
lhe serem atribuídas atitudes que, de fato, ele combatia, como a escravização
de indígenas e a destruição de sua cultura. Nesse sentido, a figura de Anchieta
bem mereceria ser reestudada e escrita com novos critérios.
São José de Anchieta tem muito de inspirador para a Igreja e os cristãos
do nosso tempo. Jovem universitário de 19 anos de idade, cheio de fé e ardor
missionário, ele deixou tudo – família, amigos, estudos, pátria, comodidades -,
e partiu missionário para um mundo distante e desconhecido; dedicou a vida
inteira a povos que nunca tinha visto e os amou profundamente, desejoso de lhes
levar a luz do Evangelho de Cristo, para valorizar suas vidas: isso pode ser
muito inspirador ainda hoje!
Anchieta, Santo, missionário incansável, sacerdote zeloso e homem de
Deus, doado inteiramente à sua missão; educador inspirado e criativo; promotor
da paz, sem medo de arriscar a própria vida nesta obra; pastor atento aos
doentes e pobres, aos mais frágeis da comunidade, a quem dedicava maiores
esforços; fundador de missões e igrejas, queria ver o benefício da vida cristã
permeando a vida das comunidades humanas e, a glória de Deus, reconhecida e
proclamada... Exemplos estimulantes!
Temos muito a
aprender de São José de Anchieta! Sua vida pode inspirar nossa Igreja,
necessitada de ser missionária, de maneira renovada. São José de Anchieta,
rogai por nós!
Cardeal Odilo P.
Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP) - CNBB
Arcebispo de São Paulo (SP) - CNBB
SEU
ARDOR APOSTÓLICO LHE VALEU O ELOGIO DE "ZELOSO SALVADOR DAS ALMAS"
São José de
Anchieta reúne em sua personalidade inúmeras qualidades próprias à grande
missão a que estava destinado. Aliou grandes virtudes a relevantes talentos naturais
como mestre, gramático e artista. Ensinou aos índios os ofícios de pedreiro,
carpinteiro e ferreiro, além de ajudá-los como enfermeiro. Seu ardor apostólico
lhe valeu o elogio de "zeloso salvador das almas", feito pelo Beato
Inácio de Azevedo, seu contemporâneo. No entanto, seu mais famoso título é o de
"Apóstolo do Brasil", dado pelo Administrador Apostólico
Bartolomeu Simões Pereira, Prelado do Rio de Janeiro, em sua homilia
durante as cerimônias fúnebres do Santo.
UM DOS MAIS
CONHECIDOS MILAGRES
Os relatos de
sua vida são ricos em milagres, alguns dos quais bem conhecidos, como a
ressurreição do índio Diogo. Este nativo morreu na vila de Santos, na casa
do nobre Domingos Dias, e todos o tinham por católico. Algo surpreendente
se passou no velório: o corpo do Diogo se moveu, causando grande espanto
entre os presentes. Aproxima-se então Grácia Rodrigues, a senhora da casa
e uma das testemunhas que prestaram juramento a respeito da veracidade do
fato, e o índio lhe pede para chamar o padre Anchieta, a fim de ser
batizado. Segundo ele, o Santo viera-lhe ao encontro, mandando que
retornasse à vida.
Todos
responderam ser impossível, pois o sacerdote se encontrava em São Vicente.
Replicou Diogo dizendo estar o santo a apenas duas léguas de distância,
perto de um riacho. Apesar de perplexos, alguns foram rapidamente ao
local, encontrando Anchieta já a caminho. Quando chegou, o missionário
ordenou ao índio que dissesse em público o motivo de sua ressurreição.
Então ele passou
a narrar que os portugueses o haviam instruído na Fé cristã, sem contudo
batizá-lo. Ele pensou não ser necessário o Batismo, sendo suficiente levar uma
vida correta. Entre as abundantes lágrimas dos presentes, o Santo batiza-o e
diz ter sido bem empregado todo o esforço de sua vida apenas para salvar esta
alma.
TÍTULO SINGULAR
RECEBIDO EM COIMBRA
Além de fatos
extraordinários como esse, há aspectos menos conhecidos desta grande
personalidade, como o de ser hábil poeta, cujas obras, feitas nas
circunstâncias mais difíceis, manifestam o inegável talento dessa alma
inocente. Qualidade essa favorecida pela formação recebida em sua juventude.
Nascido a 19 de
março de 1534, em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, uma das
principais do famoso arquipélago das Canárias, José de Anchieta em sua
primeira infância recebeu a formação dos padres dominicanos na cidade
natal. Com 14 anos, embarcou para Portugal, ingressando no prestigioso e
recém-formado Real Colégio das Artes, em Coimbra, orgulho do Rei Dom João
III, que não poupou meios financeiros para dotá-lo dos melhores
professores da Europa.
O jovem José aí
se distinguiu por sua habilidade na língua latina e a facilidade em compor
versos. Durante esses anos de estudos, Anchieta foi cognominado pelos
amigos e professores de "Canário de Coimbra", em alusão ao
melodioso canto desse pássaro e ao arquipélago de sua proveniência. Mal
sabia ele o quanto esse dom lhe seria um útil instrumento de evangelização
no longínquo Brasil...
Antes mesmo de
se tornar religioso, José consagrou sua virgindade a Nossa Senhora na
Catedral de Coimbra. Posteriormente, em 1551, entraria para a Companhia de
Jesus, que havia recebido a aprovação pontifícia em 1540.
Devido a
problemas de saúde e seu ardente desejo apostólico, os médicos
consideravam o clima brasileiro propício à sua saúde. Assim, contando
apenas 19 anos de idade, chegou ele ao Novo Continente, ao qual
consagraria os 44 anos restantes de sua vida.
VERSOS QUE SE
TORNAVAM O ENCANTO DOS ÍNDIOS
Os cânticos com
rimas improvisadas eram muito do agrado dos indígenas. E ainda hoje, no imenso
Brasil, em algumas regiões se observa a herança desse costume em canções
populares.
Esta forma de
cântico requer destreza de pensamento, a qual nunca faltou ao Canário de
Coimbra. Acompanhando os gostos daquelas almas, Anchieta escrevia versos
que se tornavam o encanto dos índios. Um bom exemplo desse tipo de
literatura encontramos na poesia composta em honra de Santa Inês, em
simples quadras rimadas, que mostram a candura de sua alma:
"Cordeirinha
linda, / como folga o povo, / porque vossa vinda / lhe dá lume novo. /
Cordeirinha santa, / de Iesu querida, / vossa santa vinda / o diabo
espanta. / Por isso vos canta, / com prazer, o povo, / porque vossa vinda
/ lhe dá lume novo".
As encenações
teatrais, os poemas, as cantigas, tudo tinha como objetivo a glória de Deus e o
bem das almas. São José de Anchieta elevava os índios de sua vida banal para os
grandiosos panoramas da fé. Em suas cartas, mais de uma vez declara que essas
pobres almas muitas vezes se adiantavam na prática da Fé Católica aos seus
colonizadores. Eram as graças dispensadas pela Divina Providência a esta nação
nascida sob o signo da Cruz de Cristo estampada nas naus de Cabral.
Eram
justamente a vida ilibada do apóstolo e a sabedoria de suas palavras que
moviam os índios à conversão. Na imagem (Estácio de Sá
em São Vicente, por Benedito Calixto (no centro, padre Nóbrega abençoa São
José de Anchieta) - Palácio de São Joaquim, Rio de Janeiro
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O
eficaz apostolado realizado por Anchieta defluía de sua santidade. Eram
justamente a vida ilibada do apóstolo e a sabedoria de suas palavras que moviam
os índios à conversão, como atesta este bonito fato narrado por Pero
Rodrigues, contemporâneo do Santo: "Ouvindo-o um dia pregar, uma
mulher simples, com muita devoção, usou desta semelhança: ‘o Espírito Santo põe
na boca do padre o que há de dizer, assim como a pomba na boca do filhote o que
há de comer'.
CATIVO NA
"COVA DOS LEÕES"
Podemos pensar
ter São José de Anchieta escrito seu mais belo poema em um momento de
reflexão e de calma. Mas não foi assim.
Os calvinistas
de origem francesa estabelecidos no Rio de Janeiro, em 1555, haviam feito
acordo com os ferozes tamoios contra os portugueses estabelecidos ao sul. E
para evitar ataques que poderiam causar pavorosos estragos tanto entre os
portugueses como entre os índios católicos, procurou-se chegar a um armistício
com os tamoios. A fim de garantir as negociações de paz, ofereceram-se como
reféns o padre Manuel da Nóbrega acompanhado por José de Anchieta, que
nessa época ainda não era sacerdote, mas já se tornara modelo de virtude
que inspirava respeito e admiração até nos inimigos.
Para tal, a 7 de
maio de 1563, desembarcam os dois religiosos em Iperoig, atual Ubatuba.
Entre as ameaças que sofreram, conta-se uma ocorrida na véspera da
Solenidade de Corpus Christi, no dia 9 de junho. Enquanto passeavam pela
praia, o padre Nóbrega e Anchieta avistaram no horizonte uma pequena
embarcação suspeita e correram para alertar o cacique Pindobuçu, que atuava
como seu protetor, mas não o encontraram.
Quando os
malfeitores, liderados pelo índio Paranapuçu, desembarcaram com intenção
de matar os religiosos, se depararam com eles rezando de joelhos diante de uma
imagem de Nossa Senhora e desistiram de seu intento. Paranapuçu confessaria
mais tarde que seu coração se transformou ao ver os missionários e perdeu
completamente a força diante deles.
Pouco depois, em
21 de junho, o padre Nóbrega teve que retornar a São Vicente, a fim de
adiantar as negociações de paz e Anchieta permaneceu sozinho por mais três
meses no cativeiro como um Daniel na cova dos leões, amansando-lhes os
corações.
PURO DE CORPO E
LIVRE NO ESPÍRITO
Enganar-nos-emos
se pensarmos que o cativeiro de São José de Anchieta e a perspectiva de
uma morte violenta a qualquer momento fossem para ele causa de temor e
angústia. Pelo contrário, ele estava sempre disposto a entregar de bom grado
sua vida e regar as terras brasileiras com seu sangue se o sacrifício servisse
para obter almas cristãs que servissem Nosso Senhor.
O próprio padre
Nóbrega se lamenta por ter deixado Anchieta sozinho, sabendo que a qualquer
desentendimento entre as partes do armistício seria o suficiente para que
o Santo perdesse a vida. Numa das cartas que o padre Nóbrega dirigiu ao
Santo, assim se expressou: "Irmão, se ainda estais vivo...". E
estava! Vivo para Deus, pois a cada dia vencia uma batalha mais terrível.
Anchieta havia
consagrado sua pureza à Virgem Santíssima e queria preservá-la intacta a
todo custo. Consideremos, entretanto, a situação em que ele se encontrava
durante o cativeiro e as provocações a que se expunha a cada momento.
Enquanto seu corpo era
cativo dos tamoios, sua alma voava livre na contemplação da Rainha dos Céus |
Certa
noite estava rezando diante de um crucifixo. Aproximou-se, então, uma índia com
intenções bem definidas e encontrou Anchieta de joelhos, imóvel. Chamou-lhe
pelo nome, mas ele não respondeu. Depois de muito insistir, ela diz: "Estás
vivo, ou morto?". E o santo respondeu com voz firme: "Estou
morto...". Estava, de fato, morto para o pecado e vivo para Deus. A
resposta foi pronunciada com tanta seriedade que a índia fugiu, gritando pela
aldeia: "O Deus deste abaré [padre em língua tupi] me persegue e me
quer matar".
O MAIS BELO DOS
POEMAS DO SANTO
Mas o fator
decisivo para manter sua integridade encontra-se na devoção a Nossa Senhora.
Foi justamente neste cativeiro, correndo riscos físicos e espirituais, que o
Canário de Coimbra escreveu seu mais belo canto: o Poema à Virgem.
O epílogo deste
poema é belíssimo e mostra a alma já vitoriosa de Anchieta:
"Eis os
versos que outrora, ó Mãe Santíssima, / Te prometi em voto, / vendo-me
cercado de feros inimigos, / pobre refém, tratava as suspiradas pazes, /
tua graça me acolheu / em teu materno manto / e teu véu me velou intactos
corpo e alma. / A inspiração do Céu, / eu muitas vezes desejei penar / e cruelmente
expirar desejei em duros ferros. / Mas sofreram merecida repulsa meus
desejos: / só a heróis / compete tanta glória".
A devoção de São
José de Anchieta a Nossa Senhora, tão filialmente refletida naqueles
versos escritos na praia, mais do que nas areias, ficou gravada no coração do
Brasil e de filhos que se tornaram profundamente marianos. Sem dúvida, o mais
belo canto do Canário de Coimbra foi ter ensinado a devoção a Maria Santíssima
ao povo brasileiro.