quinta-feira, maio 23, 2019

A PASSAGEM SECRETA DA GÁVEA


mobilidade urbana e interesse público






Considera-se interesse público o resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente tem quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade.
Ligado ao conceito de bem comum, é nada mais nada menos que o objetivo principal do Estado Democrático de Direito.
De fato, dele depende a própria concepção de Estado, na medida em que o contrato social só se justifica quando o ente público criado para garantir o bem estar coletivo se compromete efetivamente a persegui-lo.
Dentre os interesses públicos tuteláveis encontra-se indiscutivelmente a mobilidade urbana, especialmente nas grandes metrópoles, em que o tráfego intenso e desorganizado rouba tempo de vida dos cidadãos, gera poluição exagerada, dificulta o atendimento emergencial hospitalar, facilita o exercício da criminalidade e contribui, em última análise, para o caos social.
Com o fim de evitar o penoso trânsito e seus inúmeros infortúnios, vultosos investimentos são feitos pela Administração Pública para escoamento do trânsito. Pontes, túneis, estradas, ruas, vias de acesso, rodoanéis e obras que envolvem milhões de reais dos cofres públicos são realizadas com frequência para fazer frente ao sempre crescente número de veículos em circulação nas cidades Brasil afora. Em se tratando de verba pública, tais providências requerem planejamento, previsão orçamentária, licitação e toda uma movimentação da máquina administrativa, até que se possa entregar à sociedade a obra que viabilizará um melhor escoamento do trânsito e minimizará os efeitos nocivos da perda de tempo. Nocivos e por vezes fatais.
Isso porque não são apenas os acidentes que matam no trânsito: o atendimento em tempo hábil salva vidas, seja no caso do veículo Corpo de bombeiros, da viatura polícia e da ambulância, seja no caso da senhorinha que está passando mal em direção ao hospital, do pai que corre para salvar seu filho ou da parturiente que tenta chegar à maternidade. Ainda nessa linha de raciocínio é inegável numa metrópole como o Rio de Janeiro que a criminalidade se vale da lentidão do trânsito para fazer suas vítimas. Imóveis que estão em seus veículos, motoristas e passageiros tornam-se presas fáceis dos ágeis predadores em suas motos como gazelas amarradas entregues de bandeja aos leões.
Em outras palavras, mobilidade urbana é vida.
No último dia 17 de maio a cidade do Rio de Janeiro enfrentou um grave problema de mobilidade urbana: zona sul e zona oeste foram geograficamente isoladas por dois eventos simultâneos: o fechamento da Avenida Niemeyer e do túnel Rafael Mascarenhas. A primeira por deslizamento de terra e o segundo por queda de viga de concreto.
Por sorte a sociedade contava com uma passagem secreta guardada há dezesseis anos e sete chaves que prontamente foi aberta: o viaduto Graça Couto que liga o túnel Zuzu Angel à Rua Marquês de São Vicente, na Gávea. Inaugurado na década de 80, a passagem foi fechada em 2003 por pressão da Associação de Moradores daquele bairro, que considerava que o tráfego de veículos pela região tumultuava o trânsito da região.
Ocorre, entretanto, que a passagem melhora o trânsito de outras regiões. Muitas outras. Toda a Zona Oeste, na realidade. E ainda São Conrado, bairro mais atingido com o fechamento da via para a qual se licitou, pagou com dinheiro público e vinte anos depois se fechou por conveniência de um grupo individualizado de pessoas, em detrimento do interesse público de toda a população que diariamente transita entre as zonas oeste e sul da cidade.
O pequeno viaduto de poucos metros de comprimento permite que se chegue com rapidez, por exemplo, à Clínica São Vicente, à Pontifícia Universidade Católica, a inúmeras escolas localizadas na Gávea, em trajeto que a partir de São Conrado não leva mais do que cinco minutos. A volta, entretanto, necessária quando o viaduto está fechado, custa mais trinta e cinco ou quarenta minutos de vida do cidadão.  Ou ela própria, dependendo da urgência e do tempo de que ainda dispõe de atendimento.
O Direito lida diuturnamente com conflitos de interesses, sejam  individuais, sejam coletivos. A forma de solução desses conflitos, caso ambos sejam tutelados  por normas jurídicas de mesma hierarquia é a ponderação dos interesses em litígio. Assim se decide por exemplo quando o direito à liberdade de expressão de alguém se contrapõe ao direito intimidade de outrem ou quando o direito ao mínimo existencial se contrapõe à reserva do possível ou, em outras palavras, às limitações estatais.
Essa técnica de ponderação permite que se observe no caso concreto qual interesse em jogo igualmente tutelado pela norma jurídica deve prevalecer.
São Conrado é um bairro de passagem, constantemente assolado pelo engarrafamento. Se a moda pega, periga a Associação de moradores pleitear o fechamento da Auto Estrada Lagoa Barra para viver em paz com seus poucos carros e não ser incomodada com o trânsito, barulho de ônibus, poluição...
É preciso enxergar o Viaduto Graça Couto como um investimento à mobilidade urbana já pago com dinheiro público. Obra pronta e acabada que é de todos e de cada um dos munícipes e que não pode simplesmente ser obstruída em razão do interesse de um grupo pequeno de pessoas que não quer ser incomodado com um trânsito que não é mazela só de outros nem privilégio de ninguém.

Mirela Erbisti – moradora de São Conrado