domingo, outubro 07, 2012

DOIS NOMES PARA O AMOR

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio

      Divindade  grega que carrega o nome deu ma função psicológica, Eros significa o desejo  amoroso. Ocupa um lugar importante no pensamento religioso, na vida social,  assim como na arte e na literatura dos gregos.  Nas cosmogonias órficas  que narram a emergência do mundo, Eros é uma potência primordial que não tem  pai nem mãe. É de certa maneira o Um que, na origem de todas as coisas,  integra e unifica os princípios opostos, como o feminino e o masculino, o uno  e o múltiplo.
       Na mística ocidental,  tal como na psicologia e em outras ciências laicas, Eros foi entendido ora  como o desejo amoroso, força organizadora da vida coletiva, ora como figura  central da sociedade, intimamente ligada à educação aristocrática, ao ginásio  e à palestra, ora uma potência inquietante, que quebra os membros, perturba a  razão, paralisa a vontade, ora um deus malicioso que se compraz no jogo do  amor, imiscuindo-se na vida das mulheres no gineceu, enredando as intrigas  amorosas ou desenredando-as.
     No campo da  teologia, pelo menos na corrente que predominou no universo cultural do  ocidente, a concepção de Eros como força perturbadora, ligada apenas ao sexo  entendido genitalmente predominou.  Contribui para isso, certamente, o  outro nome dado ao mesmo amor que o Cristianismo, notadamente o Novo  Testamento, cunhou como a nomeação de Deus por excelência: ágape.  

      O vocábulo grego ágape significa afeição,  amor, ternura, dedicação.  Seu equivalente latino é caritas, traduzido  nas línguas latinas por caridade (charité, caridad, carità) e mesmo nas  anglo-saxônicas (charity). Isso tanto em textos estóicos como cristãos. A  força de ágape no texto cristão reside sobretudo no fato de ao longo de todo o  NT não aparecer a palavra Eros. Aparece philia para designar o amor sobretudo  feito de amizade.  Mas ao se tratar do Deus, de Jesus e do amor que devem  viver seus discípulos é ágape que predomina soberanamente.  O mesmo  ocorre para descrever e exortar os discípulos a imitar e seguir Jesus, e serem  imitadores de Deus que é misericordioso e não faz acepção de pessoas.
      Geralmente a língua profana emprega ágape  para designar um amor familiar, distinto do amor paixão ou do desejo amoroso,  que pertenceria à esfera do Eros, traduzido em latim por Cupido, nome afim com  cupiditas, que significa o desejo, a inveja, a cobiça e uma série de paixões  não bem ordenadas.  Porém é fato que, embora Eros convenha mais ao amor  dos amantes, inflamado, não é inusual vê-lo presente no Cristianismo antigo  para designar não o erotismo sexual e sentimental mas o fervor místico. Neste  sentido, o padre capadócio Gregório de Nissa, no século IV,  prefere Eros  a ágape, que lhe parece por demais tranquilo para descrever os estados de alma  místicos.  E define Eros como uma ágape mais intensa. 

        Na verdade, o conceito de ágape  recebe uma promoção repentina e intensa quando o NT, sobretudo alguns autores,  notadamente Paulo e João, o adotam e o fazem sinônimo do amor cristão. Neste  contexto, ágape significa tanto o amor condescendente e gratuito de Deus pelos  seres humanos, quanto o amor incondicionado, o devotamento absoluto que os  cristãos são chamados a ter pelo próximo, seja ele quem for, mesmo o inimigo.  Filhos do mesmo Pai, são todos irmãos e portanto o próximo não é somente o que  está perto de mim, mas o forasteiro, o desconhecido, o estrangeiro, o escravo,  o inimigo. Os textos maiores que celebram a ágape cristã são o hino ao amor da  primeira carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 13, e toda a primeira Epístola  de João. 

        Portanto, se quisermos  aqui definir como se situam Eros e ágape dentro do marco do cristianismo – e,  portanto, da teologia cristã – poderíamos encontrar alguns pontos que aparecem  nos textos paulino e joanino.  Neles, o específico do amor agápico é seu  caráter não provocado ou estimulado.  Trata-se de um amor gratuito,  independente do valor de seu objeto, desinteressado.  Ágape é, pois, o  primeiro exemplo de um amor sem apropriação nem cupidez, um amor que nada tem  de egocêntrico.  A fim de amar alguém  agapicamente, não se espera  que ele se torne amável ou que nos compraza.  Deve-se amá-lo sem condição  prévia.  E porque se ama assim, cria-se uma abertura em direção a ele ou  ela, abertura de certa maneira “pascal”.  Abre-se uma “passagem” em  direção ao outro ou outra, dá-se um esquecimento de si no outro.  Essas  são as verdadeiras nuances do amor cristão, considerado o “puro amor”.  

        Em mais de vinte séculos de  cristianismo, parece que a teologia e a mística cristãs não resolveram de  maneira integradora e satisfatória seu problema com a integração do Eros com a  ágape.  Certa tradição cristã tem se caracterizado por colocar sob  suspeita aquilo que diz respeito ao Eros. Ligado ao mundo das paixões e dos  desejos transgressores e proibidos, vai na direção inversa da que leva ao amor  de Deus, este sim, puro e elevado, que dignifica o ser humano e o faz  merecedor da salvação eterna.
         O que, no entanto, parece  que hoje se impõe como prioridade à teologia cristã, é conseguir ultrapassar a  dicotomia que se instaurou entre Eros e ágape, aliando um com o mal e o outro  com o bem.  Igualmente primordial é dissociar Eros de uma conotação  meramente sexual num sentido genital, aliando-o portanto ao pecado e à  transgressão do verdadeiro amor que estaria contido apenas na ágape.   

        Eros e ágape se  complementam e interagem mutuamente em fecunda tensão quando se trata do  verdadeiro amor. Procurar sufocar o Eros só enfraquecerá e empobrecerá o amor,  e enrijecerá ágape, o que não é bom para ninguém.

Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza  do   amor”        (Ed. Rocco).