Nos
povoados de Cunhaú e Uruaçu, no estado do Rio Grande do Norte, em 1645,
aconteceu um massacre perpetrado por invasores holandeses protestantes. Nesse
episódio, morreram mártires inúmeros católicos, dentre os quais a Igreja elevou
à honra dos altares 30 nomes: os sacerdotes André de Soveral e Ambrósio
Francisco Ferro, e incontáveis leigos, como Mateus Moreira, Estêvão Machado de
Miranda e outros.
A
memória desses santos, homens e mulheres de fé, deve ser celebrada em todo o
Brasil no dia 3 de outubro, mas, infelizmente, poucos conhecem a sua história e
menos ainda as lições que ela tem a nos passar.
1.
Em primeiro lugar, o martírio de Cunhaú nos recorda a ligação íntima que os
católicos têm com a Santa Missa dominical, ligação conhecida inclusive pelos
inimigos da Igreja.
O
morticínio que lá aconteceu, no dia 16 de julho, um domingo, foi precedido de
uma convocação no dia anterior. Um servidor dos holandeses chamado Jacó Rabe e
“conhecido de todos pelas suas frequentes incursões por aquelas paragens” convocou,
através de editais fixados nas portas da Igreja, todos os habitantes para uma
reunião após a missa, a fim de transmitir-lhes ordens emanadas pelo Alto e
Secreto Conselho Holandês. A intenção era aparentemente pacífica. Por isso, os
moradores não levaram armas consigo porque, além de ser proibido o porte de
armas pelas autoridades holandesas, tratava-se do cumprimento do preceito da
missa dominical [1].
Ainda
hoje, em muitos lugares da África e do Oriente Médio, os cristãos são com muita
frequência vitimados justamente no domingo, durante a Missa. Alvos de
terroristas muçulmanos, igrejas são bombardeadas e inúmeras pessoas mortas de
uma vez só, enquanto oferecem a Deus o seu domingo, recordando a ressurreição
de Nosso Senhor.
Nos
países mais secularizados, porém, essa identidade está cada vez mais sob
ameaça. A tendência é o ateísmo ou, quando muito, a adoção de uma crença
intimista, que de católica tem muito pouco ou quase nada. Como consequência, as
pessoas não vão mais à igreja, abandonam o culto público a Deus e levam a vida
mais ou menos do mesmo modo: como se Ele não existisse.
A
esta nossa época que se esqueceu de Deus é preciso lembrar: participar da Missa
aos domingos é não só um preceito para os católicos, que estão obrigados a
fazê-lo sob pena de pecado grave (para os que ainda acreditam em pecado, é
claro), mas também um sinal muito forte de nossa pertença a Cristo e à Santa
Igreja Católica. No mundo inteiro, no mesmo dia, professando a mesma fé e
unidos sob a autoridade dos mesmos pastores, os católicos rezam juntos por suas
vidas, suas famílias e pela salvação do mundo.
As
pessoas que não vão mais à igreja, abandonando o culto público a Deus, terminam
levando a vida do mesmo modo: como se Ele não existisse.
2.
Mas voltemos ao relato do dia 16 de julho. Os calvinistas holandeses, em
conluio com os indígenas, nem esperaram a Missa terminar para começarem a
matança dos católicos.
Após
a consagração e a elevação da hóstia e do cálice, os fiéis foram tomados de
grande espanto quando entraram no recinto da igreja Jacó Rabe à frente de um
bando de soldados holandeses e índios tapuias e potiguares, todos bem armados.
As
portas foram trancadas e a missa foi interrompida. Começou a grande chacina:
foram trucidados e mortos o Padre André de Soveral e todos os que estavam na
igreja, aproximadamente sessenta e nove pessoas.
Foram
cenas de grande atrocidade: os fiéis em oração, tomados de surpresa e
completamente indefesos, foram covardemente atacados e mortos pelos flamengos
com a ajuda dos tapuias e dos potiguares [2].
Ao
matarem deste modo os católicos potiguares, logo “após a consagração e a
elevação da hóstia e do cálice”, os algozes protestantes nos apontam sem
querer para uma segunda lição, contida
na doutrina católica sobre a Santa Missa: em toda celebração eucarística,
atualiza-se sobre o altar o único sacrifício que Cristo ofereceu na cruz pela remissão
dos pecados do mundo inteiro, e a esse sacrifício nós somos chamados a
unir-nos, não só na oração da Missa, mas também com nossa vida.
Os
mártires de Cunhaú tiveram essa oportunidade. Logo depois de ser oferecido de
maneira incruenta pelo sacerdote “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo”, ofereceu-se na mesma igreja o sacrifício cruento dos fiéis, isto é, com
derramamento de sangue. O Calvário se repetia novamente, agora no Brasil: antes
havia sido a Cabeça, agora padecia o Corpo; naquele dia, as vítimas inocentes,
ao invés de comungarem sacramentalmente, fizeram-no na carne, com seu
sofrimento e sua morte.
Se
a nossa vida não for também um oferecimento a Deus, como o desses mártires, não
seremos capazes de compreender a fundo o mistério da Eucaristia. Aqui vale um
ensinamento do venerável arcebispo norte-americano Fulton Sheen:
A
Comunhão não é apenas uma incorporação na vida de Cristo, mas também uma
incorporação na sua morte. [...] Acaso poderíamos receber toda a vida de
Cristo, sem lhe darmos nada em troca? Acaso poderíamos esgotar o cálice, sem
contribuir com algo para enchê-lo? Devemos receber o pão, sem oferecer o grão
que deve ser moído; receber o vinho, sem dar as uvas que devem ser esmagadas?
Se durante a nossa vida fôssemos sempre à Comunhão para receber a vida divina,
e a levássemos conosco sem deixar nada em troca, seríamos parasitas do Corpo
Místico de Cristo [3].
Mas
de que espécie de oferecimento estaríamos falando? Seria necessário nos
tornarmos mártires pelo sangue? Fulton Sheen responde:
Devemos,
pois, levar conosco, para a mesa da Eucaristia, o espírito de sacrifício, a
mortificação da inferioridade do nosso ser, as cruzes suportadas com paciência,
a crucificação do nosso egoísmo, a morte da nossa concupiscência e inclusive a
nossa falta de méritos para receber a Comunhão. Só nestas circunstâncias a
Comunhão será o que realmente sempre deve ser [4].
Assim,
ainda que não venhamos a entregar a nossa vida como esses valorosos homens de
Deus, nem por isso estamos dispensados do chamado “martírio branco”, morrendo
para nós mesmos nas pequenas coisas do dia a dia.
3.
Prosseguindo agora para o relato do martírio de Uruaçu, ocorrido no dia 3 de
outubro, vejam todos se não é de uma crueldade estarrecedora o que se deu:
Logo
chamaram aos brasilianos para os matar, o que se executou logo, fazendo nos
corpos destes mártires tais anatomias que são incríveis; e não contentes com
elas os ditos flamengos os ajudaram a matar, assim arrancando os olhos a uns, e
tirando as línguas a outros, e cortando as partes vergonhosas, e metendo-lhas
nas bocas [5].
Aqueles
fiéis católicos, porém, mesmo padecendo todas essas torturas, como morriam?
“Pedindo a Deus que tivesse deles misericórdia, e lhes perdoasse suas culpas e
pecados, protestando que morriam firmes na santa fé católica crendo o que cria
a Santa Madre Igreja de Roma” [6].
Com
isso, aprendemos uma terceira lição: a de que, ao contrário do que prega um
cristianismo “moderno”, não só não é verdade que todas as religiões são iguais,
como dentro do próprio cristianismo não vale tudo. Dizer que tanto faz, por
exemplo, ser católico ou protestante, é rir no túmulo dos mártires de Uruaçu,
que preferiram morrer a abjurar da fé católica.
Mas
por que não conseguimos entender mais a atitude dos mártires? Por que para
nossos contemporâneos o massacre de Cunhaú e Uruaçu não passa de um episódio
político ou de “intolerância religiosa”, sem nenhum significado maior? Porque,
tragicamente, muitos deixaram de crer “na Santa Igreja Católica”, como professamos
no Credo.
Quando
não se acredita mais que a religião católica contém a verdade revelada por Deus
para a nossa salvação, uma das primeiras coisas que se relativiza é o sangue
dos mártires. Se todas as religiões são iguais, se tanto faz ir a uma igreja
católica, a um templo protestante ou a um terreiro de umbanda, a verdade é que
os mártires do Rio Grande do Norte morreram em vão e, com eles, toda uma
multidão de homens e mulheres cultuados nos altares da Igreja.
Todos
eles, no entanto, realmente acreditavam que era melhor morrer do que abandonar
a fé católica e pecar contra Deus. Com isso, deram um testemunho eloquente da
verdade que professavam. Por essa razão, o sangue deles é chamado “semente de
novos cristãos”, porque as pessoas de fora da Igreja, vendo com que destemor os
de dentro não hesitaram em dar a própria vida pelo que acreditavam, acabam
convencidas da verdade e fazem-se católicos.
Fonte: padrepauloricardo.org