Certo dia da
segunda metade do ano do Senhor de 1610, as grandes e amareladas velas do
galeão "São Pedro" eram recolhidas e suas âncoras tocavam o fundo de
uma bela baía. A tripulação inteira abeirava-se do parapeito e contemplava com
curiosidade e admiração a cidade de Cartagena, na província da Nova Granada
(atual Colômbia), que se apresentava deslumbrante diante dos seus olhos, com
suas enormes muralhas de pedra branca brilhando sob o causticante sol tropical.
O azul profundo do céu refletia-se nas águas mansas e cálidas do porto, onde se
balançava graciosamente um sem-número de embarcações de todo tipo e tamanho.
Dentre a
pitoresca multidão de marinheiros e passageiros que se apressavam em
desembarcar do galeão recém-chegado, destacavam- se singularmente as negras
batinas de quatro religiosos: três sacerdotes e um noviço da ordem fundada, não
havia muito tempo, por Inácio de Loyola: a Companhia de Jesus. Dos três
presbíteros, a História não perpetuou os nomes. Religiosos desconhecidos, como
centenas de milhares que imolaram suas vidas seguindo os passos do Mestre
Divino, anônimos para os homens e filhos prediletos de Deus. O noviço, porém,
de fisionomia austera, silencioso, um tanto retraído e quase passando
despercebido, marcou com sua vida a história da América do Sul e brilhará para
sempre no firmamento da Igreja: São Pedro Claver.
Nascido em
Verdú, pequena cidade espanhola da Catalunha, em 1580, Pedro Claver sentiu- se
chamado para a vida religiosa desde tenra infância. Aos 22 anos de idade, bateu
às portas do noviciado da Companhia de Jesus.
Dois anos mais
tarde, a fim de completar os estudos de Filosofia, foi enviado por seus
superiores ao Colégio de Montesion, na ilha de Maiorca. Deu-se, então, um
providencial encontro que marcaria de modo indelével a vida de Pedro e firmaria
definitivamente sua vocação.
Nesse colégio
habitava um venerável ancião, simples irmão coadjutor e porteiro da casa, que
séculos depois seria canonizado e viria a ser uma das glórias da Ordem: Santo
Alonso Rodríguez.
Desde o primeiro
instante em que os límpidos olhos do santo porteiro penetraram o coração do
noviço, discerniu o ancião a vocação do jovem e um profundo e sobrenatural
relacionamento uniu então aquelas duas almas.
"O que devo
fazer para amar verdadeiramente a Nosso Senhor Jesus Cristo?" - perguntava
o estudante. E Santo Alonso não se contentava em dar um simples conselho, mas
descortinava os ilimitados horizontes da generosidade e do holocausto:
"Quantos que vivem ociosos na Europa, poderiam ser apóstolos na América!
Não poderá o amor de Deus sulcar esses mares que a cobiça humana soube cruzar?
Não valem também aquelas almas a vida de um Deus? Por que tu não recolhes o
Sangue de Jesus Cristo?" As ardentes palavras do velho porteiro acenderam
labaredas de zelo que acabariam por consumir o coração de Pedro Claver.
Nessa época, o
irmão Alonso foi favorecido por Deus com uma mística visão: sentiu-se
arrebatado até o Céu onde contemplou incontáveis tronos ocupados pelos
bem-aventurados e, no meio deles, um trono vazio. Escutou uma voz que lhe
dizia: "É este o lugar preparado para teu discípulo Pedro, como prêmio de
suas muitas virtudes e pelas inúmeras almas que converterá nas Índias, com seus
trabalhos e sofrimentos".
No dia 23 de
janeiro de 1610, o superior provincial, atendendo a seus pedidos, enviou-o como
missionário à tão anelada América do Sul. E no final desse mesmo ano, após
longa travessia, aportou na cidade de Cartagena, uma das mais importantes do
Império Espanhol do além-mar.
Terminada sua
formação teológica na casa de formação dos jesuítas na província da Nova
Granada, recebeu finalmente o Sacramento da Ordem no dia 19 de março de 1616 e
celebrou sua primeira Missa diante da imagem da Virgem dos Milagres a quem
professaria sempre uma ardorosa e filial devoção.
A cidade de
Cartagena constituía, nessa época, um dos pontos principais de comércio entre a
Europa e o novo continente, e juntamente com Veracruz, no México, eram os dois
únicos portos autorizados para a introdução de escravos africanos na América
Espanhola. Calcula-se que cerca de dez mil escravos chegavam anualmente a esta
cidade, trazidos por mercadores, geralmente portugueses e ingleses, que se
dedicavam a este vil e cruel comércio.
Esses pobres
seres, arrancados das costas da África, onde viviam no paganismo e na barbárie,
eram trazidos no fundo dos porões dos navios para serem vendidos como simples
objetos e finalmente destinados ao trabalho nas minas e nas fazendas onde,
depois de haver vivido sem esperança, morriam miseravelmente sem o auxílio da religião.
Converter esses
milhares de infelizes cativos e lhes abrir as portas do Céu, foi a missão à
qual Pedro Claver consagrou toda a sua existência.
Assim, quando
chegou o grandioso e esperado momento de emitir os votos solenes, pelos quais
se comprometia a ser obediente, casto e pobre até a morte, assinou o documento
com a fórmula que doravante seria a síntese de sua vida: Petrus Claver,
æthiopum semper servus. - "Pedro Claver, escravo dos africanos para
sempre". Tinha 42 anos de idade.
Quando um navio
carregado de escravos chegava ao porto, o Padre Claver acorria imediatamente
numa pequena embarcação, levando consigo uma grande provisão de biscoitos,
frutas, doces e aguardente.
Aqueles seres
embrutecidos por uma vida selvagem e exaustos pela viagem realizada em
condições desumanas, olhavam-no com temor e desconfiança. Mas ele os saudava
com alegria e por meio de seus auxiliares e intérpretes negros - tinha mais de
dez - dizia-lhes: "Não temais! Estou aqui para vos ajudar, para aliviar
vossas dores e doenças."
E muitas outras frases consoladoras. Porém, mais que as palavras, falavam suas ações: antes de mais nada, batizava as crianças moribundas; depois recebia em seus braços os enfermos, distribuía a todos bebidas e alimentos e fazia-se servo daqueles desventurados.
E muitas outras frases consoladoras. Porém, mais que as palavras, falavam suas ações: antes de mais nada, batizava as crianças moribundas; depois recebia em seus braços os enfermos, distribuía a todos bebidas e alimentos e fazia-se servo daqueles desventurados.
Levando em sua mão direita um bastão encimado por uma cruz e um belo
crucifixo de bronze pendurado no pescoço, saía Pedro Claver todos os dias para
catequizar os escravos. Calores extenuantes, chuvas torrenciais, críticas
e incompreensões até dos próprios irmãos de vocação, nada arrefecia sua
caridade.
Com freqüência
batia nos pórticos senhoriais da cidade pedindo doces, presentes, roupas,
dinheiro e almas decididas que o auxiliassem em seu duro apostolado. E não
poucas vezes nobres capitães, cavaleiros e senhoras ricas e piedosas o seguiam
até as míseras moradias dos escravos.
Entrando nesses
lugares, seu primeiro cuidado dirigia-se sempre aos doentes.
Lavava-lhes o rosto, curava suas feridas e chagas e repartia comida aos mais necessitados. Apaziguadas as penalidades do corpo, reunia então a todos em torno de um improvisado altar, os homens de um lado e as mulheres de outro, e iniciava a catequese que ele sabia colocar maravilhosamente ao alcance da curta inteligência dos escravos. Pendurava à vista de todos uma tela pintada com a figura de Nosso Senhor crucificado, com uma grande fonte de sangue correndo de seu lado ferido; aos pés da Cruz, um sacerdote batizava com o Sangue Divino vários negros, os quais apareciam belos e brilhantes; mais abaixo, um demônio tentava devorar alguns negros que ainda não haviam sido batizados.
Lavava-lhes o rosto, curava suas feridas e chagas e repartia comida aos mais necessitados. Apaziguadas as penalidades do corpo, reunia então a todos em torno de um improvisado altar, os homens de um lado e as mulheres de outro, e iniciava a catequese que ele sabia colocar maravilhosamente ao alcance da curta inteligência dos escravos. Pendurava à vista de todos uma tela pintada com a figura de Nosso Senhor crucificado, com uma grande fonte de sangue correndo de seu lado ferido; aos pés da Cruz, um sacerdote batizava com o Sangue Divino vários negros, os quais apareciam belos e brilhantes; mais abaixo, um demônio tentava devorar alguns negros que ainda não haviam sido batizados.
Dizia-lhes,
então, que deveriam esquecer todas as superstições e ritos que praticavam nas
tribos e lugares de origem, e lhes repetia isso muitas vezes.
Depois lhes ensinava
a fazer o sinal da cruz e lhes explicava paulatinamente os principais mistérios
da nossa Fé: Unidade e Trindade de Deus, Encarnação do Verbo, Paixão de Jesus,
mediação de Maria, Céu e inferno.
Pedro Claver
compreendia bem que aquelas mentalidades rudes não podiam assimilar idéias
abstratas sem a ajuda de muitas imagens e figuras. Por isso lhes mostrava
estampas nas quais estavam pintadas cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa
Senhora, representações do Paraíso e do inferno.
Após inúmeras
jornadas de árdua evangelização, batizava-os finalmente. Para celebrar este
Sacramento utilizava uma jarra e uma bacia de fina porcelana chinesa, e queria
que os escravos estivessem limpos. Introduzia seu crucifixo de bronze na água,
abençoava-a e dizia que agora aquele líquido era santo, e que após serem
lavadas nessa água suas almas se tornariam mais refulgentes que o
sol. Calcula-se que ao longo de sua vida São Pedro Claver batizou mais de
300 mil escravos. Aos domingos, percorria ruas e estradas da região chamando-os
à santa Missa e ao sacramento da Penitência. Dias havia que passava a noite
inteira confessando os pobres escravos.
Sua ardente e inextinguível sede de almas era apenas o transbordamento
visível das labaredas interiores que consumiam a alma deste discípulo de
Cristo. Significativos indícios levantam um tanto o véu que cobriu durante sua
vida o altíssimo grau de união com Deus que ele havia atingido.
"Todo o
tempo livre de confessar, catequizar e instruir os negros, dedicava- o à
oração", narra uma testemunha. Repousava diariamente apenas três horas, e
passava o resto da noite de joelhos em sua cela ou diante do Santíssimo
Sacramento, em profunda oração, muitas vezes acompanhada de místicos
arroubos. Grande adorador de Jesus-Hóstia, preparava-se todos os dias
durante uma hora antes de celebrar o Sacrifício do Altar, e permanecia em ação
de graças meia hora após a Missa, não permitindo que ninguém o interrompesse
nesses períodos.
Ilimitada também
era sua devoção a Nossa Senhora. Rezava o Rosário completo todos os dias,
ajoelhado ou andando pelas ruas da cidade, e não deixava passar nenhuma festa
d'Ela sem organizar solenes celebrações, com música instrumental e coral.
Aquele varão,
que tinha passado a vida fazendo o bem, que tantas dores havia aliviado e
tantas angústias consolado, teve de padecer, como seu Divino Modelo, indizíveis
tormentos físicos e morais antes de ser acolhido na glória celeste.
Após 35 anos de
intensíssimo labor apostólico e 70 de idade, caiu gravemente enfermo. Pouco a
pouco foram-se paralisando as extremidades de seus membros, e um forte tremor
agitava continuamente seu corpo extenuado. Tornou-se "uma espécie de
estátua da penitência com as honras de pessoa", relata uma testemunha.
Os últimos
quatros anos de existência terrena, ele os passou imobilizado na enfermaria do
convento. E, por incrível que pareça, este homem que havia sido a alma da
cidade, o pai dos pobres e o consolador de todas as desventuras, foi
completamente olvidado por todos e submergido no esquecimento e no abandono.
Passava os dias,
os meses e os anos em silenciosa meditação, contemplando da janela da
enfermaria a imensidade do mar e escutando a melodia das ondas que se
rompiam contra as muralhas da cidade. A sós com a dor e com Deus, aguardava o
momento do supremo encontro.
Um jovem escravo
fora designado pelo superior da casa para cuidar do doente. Entretanto, esse
que deveria ser enfermeiro não passava de bruto algoz. Comia a melhor parte dos
alimentos destinados ao paralítico e "um dia o deixava sem bebida, outro
sem pão, muitos sem comida", segundo conta uma testemunha da época. Também
"o martirizava quando o vestia, governando-o com brutalidade, torcendo-lhe
os braços, batendo nele e tratando-o com tanta crueldade como desprezo".
Porém, nunca seus lábios proferiram a menor queixa. "Mais merecem minhas
culpas", exclamava às vezes.
Certo dia de
agosto de 1654, disse Claver a um irmão de hábito: "Isto se acaba. Deverei
morrer num dia dedicado à Virgem". Na manhã de 6 de setembro, à custa de
um imenso esforço, fez-se conduzir até a igreja do convento e quis comungar
pela última vez. Quase se arrastando, aproximou-se da imagem de Nossa Senhora
dos Milagres, diante da qual havia celebrado a sua primeira Missa. Ao passar
pela sacristia, disse a um irmão: "Morro. Vou morrer. Posso fazer algo por
vossa reverência na outra vida?"
No dia seguinte, perdeu a fala e recebeu a Unção dos Enfermos.
No dia seguinte, perdeu a fala e recebeu a Unção dos Enfermos.
Sucedeu, então,
algo de extraordinário e sobrenatural. A cidade de Cartagena pareceu acordar de
uma longa letargia e por todos os lados corria a voz: "Morreu o
santo!" E uma multidão incontenível dirigiu-se para o colégio dos
jesuítas, onde agonizava Pedro Claver. Todos queriam oscular suas mãos e seus
pés, tocar nele rosários e medalhas. Distintas senhoras e pobres negras,
nobres, capitães, meninos e escravos desfilaram nesse dia diante do santo, que
jazia sem sentidos em seu leito de dor. Só às 9 horas da noite os padres
conseguiram fechar as portas e assim conter aquela piedosa avalanche.
E assim, entre
1h e 2h da madrugada de 8 de setembro, festa da Natividade de Maria, com grande
suavidade e paz, o escravo dos escravos adormeceu no Senhor.
(Revista Arautos do Evangelho, Set/2005, n. 45, p. 20 à 23)
(Revista Arautos do Evangelho, Set/2005, n. 45, p. 20 à 23)
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